Japão, tudo de novo

De Tóquio à tropical Okinawa, passando por Kyoto e Osaka, um país que avança para o futuro sem perder sua essência ritual

No calendário oficial, 2018 já avança para o fim do primeiro trimestre, mas o ano ainda não começou no Japão. Não como se deve. Como se deve, começa entre o fim deste mês e o início de abril, logo após o equinócio da primavera, quando o país se mobiliza para a floração da cerejeira – a sakura-zen. No meio da pressa da vida japonesa, o noticiário não perde os primeiros botões, as empresas param e as famílias se reúnem em animados piqueniques nos parques com as copas das árvores tingidas de rosa e branco. É a milenar Hanami, a “visão das flores”. Tão espetacular quanto efêmera: de uma a duas semanas, as flores se vão e a vida apressada retoma seu passo.

A dimensão simbólica, delicada, da Hanami é a chave de uma civilização profundamente ritual – uma marca que não se perdeu com o desenvolvimento de tecnologias ultramodernas. Para o forasteiro, aliás, sobram contrastes desorientadores: dos plácidos jardins às cidades de luzes feéricas; do papel artesanal washi aos karaokês; da cerimônia do chá às ruidosas casas de jogos eletrônicos; dos templos budistas e xintoístas aos arranha-céus à prova de terremoto; do teatro nô e kabuki ao pop de Hello Kitty, Godzilla e outros monstros e mangás.

Tudo passa pelas ideias de repetição e transformação, que estão longe de ser contraditórias. Difícil de compreender inteiramente, mas fascinante, de uma maneira especial em cada cidade e região.

TÓQUIO
EDO, CIDADE ABERTA

Historicamente, nenhuma cidade ilustra tão bem essa diversa relação entre passado e futuro quanto Tóquio (“capital do leste”). Depois de séculos de resistência à influência estrangeira, a Revolução Meiji (1868) abriu os portos do país e transferiu a capital do império de Kyoto para a então ci-dade de Edo, uma antiga vila de pescadores. À beira da baía em que deságua o Rio Sumida, Tóquio cresceu, foi destruída por um violento terremoto em 1923, reconstruída e destruída de novo nos bombardeios B-29s americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1964, estava pronta para sediar os Jogos Olímpicos – evento que a cidade abrigará novamente da-qui a dois anos. Obras em andamento.

Hoje, considerando toda a sua região metropolitana, Tóquio é uma megalópole que concentra coisa de 35 milhões de habitantes – a mais densamente povoada do planeta. Sua downtown, espraiada em torno do Palácio Imperial, conta com 9 milhões de pessoas, que vivem, trabalham e se deslocam entre 23 bairros, cada um deles subdivido em distritos. É um pouco assustador no início, mas a boa notícia ao viajante é que existe quase que uma organização “temática” para cada um dos bairros. Não há, dá para garantir, lugar melhor para quem gosta de bater perna por grandes cidades, com a vantagem de possuir uma rede de metrô e trens que leva literalmente a qualquer parte.

No núcleo original da cidade, em Marunouchi, fica o Palácio Imperial, erguido numa área de 3,4 quilômetros quadrados, equivalente ao Central Park, onde ficava uma fortaleza xogum. Cercado por um grande fosso, o palácio só abre a visitantes duas vezes por ano – no resto, os súditos japoneses têm acesso ao jardim oriental que dá na Nijubashi, a “ponte dupla” de pedra com dois arcos refletidos na água. No entorno, os edifícios modernos abrigam os equipamentos administrativos federais. À vista es-tão os tijolos vermelhos da Tokyo Station, inspirada na neorrenascentista Estação Central de Amsterdã. De lá disparam trens-bala, os sempre pontuais shinkansen, para três das quatro ilhas principais do país.

A leste estão as avenidas largas de Ginza, antigo lugar de cunhagem de moedas de prata dos xoguns que se transformou em bairro sofisticado, com unidades da Shiseido, Chanel, Leica, o showroom da Sony e várias lojas de departamentos. Ali, as japonesas elegantes e bem maquiadas atravessam o cruzamento Yon-Chome, sob os painéis de LED gigantes insta-lados nas fachadas dos prédios. Às vezes, surge um grupo de mulheres de quimonos de seda floridos.

Seguindo a pé em direção ao rio e à baía, chega-se ao tradicional mercado atacadista de Tsukiji, cercado de um emaranhado de banquinhas. É lá que donos de restaurantes e varejistas arrematam, ainda de madrugada, atuns gigantes, ovas de bacalhau e outros peixes e frutos do mar mais exóticos. É um dos melhores lugares no mundo para comer sushi e sashimi. Só fique de olho: até outubro, o mercado vai para um lugar mais moderno e seguro em Toyosu, do outro lado do cais de Harumi.

Além da baía, e da pênsil Ponte do Arco-Íris, fica Odaiba, centro comercial moderno e algo kitsch. Vire criança na roda-gigante de 110 metros de altura ou diante do bonecão do robô Gundam em frente ao shopping Diver City; abstraia (ou não), o outlet VenusFort, em estilo romano, e a réplica da Estátua da Liberdade.

NERDS E BUDISTAS
Mais ao norte da cidade fica o paraíso galáctico dos nerds, Akihabara. O bairro, muvucado e colorido, concentra uma série de lojas de eletrônicos de todos os portes, além de imensas livrarias com vários andares inteiramente dedicados a mangás e animes. Por ali também ficam vários dos famosos cafés temáticos japoneses – como os Cat e Owl Cafes, pra quem não tem espaço pra pet em casa fazer cafuné em gatos e corujas.

Em Ueno está o parque homônimo, com zoo e vários museus. Nessa vizinhaça, outra atmosfera. Quem conhece os filmes de Yasujiro Ozu sabe que, no Japão, pelo menos uma vez, se verá um trem passando e se ouvirá o grasnar de corvos. (Pode acrescentar aí as máquinas de bebidas, snacks e até comida. Já calcularam a existência de uma para cada 23 habitantes – estão em toda parte.)

Perto, Asakusa abriga o principal templo da cidade, o Senso-ji, erguido depois que dois pescadores acharam, no Rio Sumida, uma estátua (lembra algo?) da deusa budista da misericórdia, Kannon. O destino espiritual é antecedido de um portão (Kaminarimon, “do trovão”), que afunila a multidão numa estreita rua comercial, a Nakamise-dori. Tem todos os suvenires de que você precisa: hashis, ímãs de geladeira, camisetas, quimonos meio fajutos, darumás à espera do segundo olho, gatinhos da sorte e kokeshi dolls, as bonequinhas japonesas de madeira.

O templo, em si, fica entre um grande pagoda de cinco andares e um santuário xintoísta, a religião original do Japão antes de o budismo indiano chegar por lá via China. Por causa dos bombardeios, pouca coisa ali é original – mas quem se importa neste mundo de efemeridade budista e permanente transformação?

Pra horas de perguntas assim, há no pátio um queimador de incenso e uma regulamentar fonte de purificação, necessária para entrar no templo. Com uma moedinha de 100 ienes (¥) dá também pra conferir sua fortuna nas omikuji – caixinhas de madeira com varetas de bambu numeradas, que correspondem a gavetas que guardam tirinhas de papel com sua sorte. Se der ruim, o certo é deixá-las por lá mesmo, amarradas num suporte especial ou, tradicionalmente, numa árvore.

Há uma grande logo ali. A Skytree, torre de 634 metros, foi inaugurada, em 2012, para dar mais potência às telecomunicações digitais, em substituição à Tokyo Tower, uma Eiffel vermelha (e maior) que segue firme no horizonte do sul da cidade. Aqui, no velho norte, a Skytree banca o posto de a mais alta do mundo do gênero, com dois observatórios, de onde, em dias limpos, pode-se ver, a sudoeste, o Monte Fuji. Ao lado, à beira do rio, outra construção chama a atenção: a sede da cervejaria Asahi, projetada por Philippe Starck em forma de copo de chope estilizado; anexo, uma (bem) estranha escultura com aparência de “chama” dourada.

BOÊMIOS E COSPLAY
A oeste do Palácio Imperial, a linha circular de trens Yamanote interliga os bairros mais novos. Shinjuku, que abriga as impressionantes torres do governo metropolitano e outros edifícios modernos, é o lugar também da estação metro-ferroviária mais movimentada do mundo, com 3,5 milhões de passageiros por dia entrando, se amassando em várias composições e chegando à rua por alguma de suas mais de 200 saídas. É um labirinto, em parte subterrâneo, cheio de lojas e restaurantes. Perder-se um tanto é inevitável. Relaxe, portanto.

Nas saídas a leste fica o distrito red-light de Kabukicho, vibrante, saturado com as luzes de néon coloridas que nos acostumamos a associar à cidade. Acrescida do rumor permanente dos trens, dos telões gigantes e do formigueiro humano, a noite mergulha numa hipnótica atmosfera futurista de Blade Runner. Ali, a vocação boêmia disseminou os hotéis-cápsula, abastecendo também as lojas de conveniência com artigos como camisa branca, roupas de baixo e até gravata – pra quem perdeu o último trem depois de um saquê a mais. Pertinho fica Golden Gai, um emaranhado de ruazinhas e becos em que se amontoam dezenas de bares e izakayas, alguns só com um balcãozinho.

De lá, o trem leva a Harajuko, epicentro da cultura cosplay – a do povo pintado e vestido como personagem de anime. É o bairro da moçada, que se exibe entre a entrada do sereno Parque Yoyogi, onde fica o santuário xintoísta Meiji, e a apinhada Takeshita-dori, ruazinha comercial. O menu inclui lojas como a Daiso, com artigos a ¥ 100, e a Bic Camera, de eletrônicos. No fim dela, abre-se a arborizada Avenida Omotesando.

Sacolejando mais uma estação dentro do trem, chega-se a Shibuya, outro point-maior-do-mundo. Filmes como Encontros e Desencontros, Resident Evil: Afterlife, Velozes e Furiosos etc. já mostraram a multidão atravessar, em linha reta e na diagonal, as faixas do cruzamento-formigueiro líder em passadas diárias. No Japão, de vez em quando, dá uma sensação estranha de estar no contrafluxo, tanta gente vem na direção contrária.

Numa das esquinas, outro personagem de cinema: a estátua de Hachiko, o fiel cachorrinho akita que, todos os dias entre 1925 e 1935, ia à estação esperar o dono, que ha-via morrido, voltar do trabalho.

KYOTO
PAZ, TRANQUILIDADE

Quase 500 quilômetros a oeste, Kyoto oferece outras delicadezas. Fundada no século 8 como Heiankyo (“capital da paz e da tranquilidade”), a cidade urbanizou-se em uma planície ao pé das montanhas, disposta em quadras regulares e segundo as regras do feng shui. A antiga capital do Ja-pão foi poupada dos pesados bombardeiros na Segunda Guerra Mundial, e toda ela é um tesouro de inumeráveis templos religiosos e monumentos dos antigos tempos samurais.

Estimulados pelo governo e comércio locais, mulheres e homens de quimono são mais frequentes nessa cidade mais conservadora e estratificada, que tem nos arranjos de ikebana uma de suas marcas culturais. As gueixas legítimas (ou geikos) concentram-se no bairro de Gion, em que seguem dedicadas às artes do entretenimento tradicionais – cantando, tocando música e dançando em reuniões privadas, com o rosto branco e os lábios vermelhos, com indumentária e arranjos de cabelo impecáveis.

Logo na saída da moderna estação ferroviária, no sul da cidade, o caminho leva quase que naturalmente a Higashiyama. Depois de atravessar o Rio Kamo – em cujas margens os moradores fazem piqueniques à sombra das cerejeiras –, é preciso alguma disposição para subir a Sannenzaka-Ninenzaka, ladeira com lojinhas instaladas em casas de madeira – outra marca de Kyoto. Acima do skyline erguem-se os cinco andares do pagoda Yasaka e, no fim do périplo, o impressionante Kiyomizu-dera. Erguido no século 8, reconstruído em sua forma atual no 17, é uma obra de arte de marcenaria, sustentada na encosta da montanha por 139 pilares de cipreste, sobre os quais corre um balcão de tábuas encaixado. Nenhum prego foi usado. A má notícia é que o templo está em obras de restauração, coberto com tapume até 2020. Pra não perder a viagem, mergulhe no “útero” de Daizuigu Bosatsu, no Templo Tainai Meguri. No porão absolutamente escuro, uma escada leva a uma sala onde um facho ilumina uma pedra com a inscrição “Hara” – “aquele que tira”, em sânscrito. Faça um pedido, renasça e volte à superfície para avistar a cidade lá embaixo. Dali se vê, apequenada, a Kyoto Tower, de 131 metros – e a cidade estendida no vale.

Nada parecido com o que você já viu, o Sanjusagen-do é um templo ho-rizontal de cerca de 120 metros, dividido em 33 colunas, que abriga nada menos que 1 001 imagens douradas de Kannon, cada uma delas com 11 cabeças e 40 braços. Do século 13, o edifício já contava com a tecnologia de fundações móveis, que balançam mas não caem com os terremotos.

Longevidade não teve o Kinkaku-ji, o Pavilhão Dourado. Concebido originalmente para ser casa de veraneio de um xogum no século 15, o edifício foi sucessivamente destruído até, em 1955, ser refeito de acordo com o projeto original. Folheado a ouro, a réplica reluz sob o sol e espelha seus dois andares no lago em frente, cercado por um lindo jardim.

Assim, de templo em templo, sem pressa, Kyoto vai pedindo para você ficar. Se bater o “estresse”, uma hora de carro leva a Arima Onsen, estância termal histórica na vizinha Kobe. O spa conduz ao passado: um banho coletivo em águas vulcânicas, com toalhinha na cabeça; um lauto e sofisticado jantar vestido com o quimono yukata; uma noite de sono em um futon no tatame do ryokan, o quarto tradicional japonês. Vale cada iene.

OSAKA
O QUE VOCÊ DESEJA?

Modernidade e agitação, contu-do, nunca estão muito longe. Dessa mesma região que inclui Kyoto e Kobe (Kansai) faz parte a industrializada, rica e populosa Osaka, a terceira maior cidade do país – fica atrás de Tóquio e Yokohama, que também integra a área metropolitana em que está a capital. Mas Osaka – portuária, cheia de canais – se orgulha mesmo é de sua gastronomia. Há muitos pratos típicos, e a bons preços. Vá se preparando para lidar com os quilos extras, porque, no Japão, se come bem demais.

No distrito central de Minami, perto da grande Namba Station, fica a Dotonbori, calçadão em que se alinham restaurantes e barraquinhas que alardeiam suas especialidades em fachadas tomadas de bonecos gigantes de caranguejos, polvos, guiozas, ostras, bois, sushis e baiacus. Uns são animados, algo robóticos, outros são só esquisitões mesmo. Ali, em meio a cozinhas fumegantes preparando lámen e udon, os japoneses fazem fila no meio do passeio aguardando um lugar nas casas mais concorridas.

Nas barracas de rua, a estrela comfort food é o takoyaki, bolinho de cará japonês com um big pedaço de polvo dentro. O preparo é um show à parte, com os cozinheiros girando com hashis, a toda velocidade, as bolinhas, tostadas em grandes fôrmas especiais. Outro snack bastante popular, também de rua, é o kushikatsu, um espeto gordito de carne, frutos do mar ou legumes empanados. Preste atenção: mergulhe no molho compartilhado uma vez antes de morder. Depois, só no seu prato.

Tradicional também é o okono-miyaki (“o que você deseja”, em ja-ponês), um misto de omelete e panqueca, que mistura carne, ovo, tiras de barriga de porco, vegetais, frutos do mar, queijo e o que mais o cliente, com espátula na mão, queira colocar na chapa quente, instalada na mesa. Essa chapa específica (teppan) é a mesma usada para preparar o nosso conhecido teppanyaki, em que se pode grelhar também um pouco de tu-do o que você quiser.

Sobrevivendo à comilança, adentra-se nas ruas comerciais cobertas ao redor – a Shinsaibashi-suji é a maior do gênero no país, com 600 metros de extensão. Ou, seguindo reto, dar na Ponte Ebisu-bashi, sobre um dos canais da cidade. Bem em frente ficam os painéis de néon com jeito de Times Square, em que se destaca, desde 1935, o Glico Man, garoto-propaganda de uma marca de balas. Abaixo da ponte, deques levam o turista ao ancoradouro, de onde saem barcos de passeio. Repare na roda-gigante meio retangular em volta da fachada da Don Quijote, loja meio bagunçada que está em toda parte do Japão e vende de tudo, de cílios postiços a eletrônicos.

Para não perder de vista a história, dê uma esticada no Castelo de Osaka, um pouco mais ao norte. De maneira similar ao Palácio Imperial de Tóquio, está instalado entre muralhas e um grande fosso. É outro edifício que acumula destruições desde que foi concebido pelo daimiô Toyotomi Hideyoshi (1536–1537) – das escaramuças da Revolução Meiji à Segunda Guerra Mundial. Reconstruído, ergue-se hoje magnificamente com seus oito andares de concreto. À noite, castelo e jardim em torno, repleto de cerejeiras, se iluminam. Pra terminar o dia e começar tudo de novo, só que diferente.

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Viagem e Turismo, março de 2018
© Almir de Freitas