Ex-colônias de Inglaterra e Portugal, as duas regiões administrativas especiais da China combinam as luzes asiáticas com o passado europeu
Da janela vê-se a sombra do avião contornando em meia-lua a ilha principal e a porção continental de Hong Kong. Se é possível falar em “primeira impressão” em uma época em que o viajante pode antecipar sua jornada nos googles da vida, a terra dos pais de Bruce Lee parece ser o que, em grande parte, de fato é: um populoso entreposto comercial no extremo do mundo, com um imenso porto pontilhado de contêineres coloridos como peças de Lego e espigões à margem de uma baía apinhada de petroleiros, cargueiros, barcaças de todos os tamanhos e fins. Ex-colônia inglesa, Hong Kong voltou, em 1997, para o governo de Pequim com o status de Região Administrativa Especial, o que lhe garante algumas regalias democráticas. Caso semelhante é da vizinha Macau, um sempre surpreendente pedaço de Portugal na paisagem do Mar da China.
Do céu sobre Hong Kong, o espetáculo termina no aeroporto de Chek Lap Kok, erguido em um aterro anexo à verdinha Lantau, parte do arqui-pélago que reúne mais de 250 ilhas e ilhotas. Se o viajante, como eu, vem da China continental, desembarca em outro país: é preciso passar por uma nova alfândega e uma imigração (que, ao contrário da China, dispensa visto aos brasileiros). Mudam ainda o idioma (cantonês), a moeda (dólar de Hong Kong) e as finanças do turista.
À diferença das grandes cidades chinesas, serviços como restaurantes, hotéis e transporte são caros por aqui. Para quem não passa sem compras, em compensação, é como adentrar o paraíso: porto livre, isento de pesados impostos de importação, Hong Kong é como um imenso free shop a céu aberto, principalmente para eletrônicos. Legítimos, não falsificados.
BAÍAS E QUEBRADAS
A ilha que dá nome à região toda é a mais antiga, centro financeiro e dos negócios portuários. Agitada, lotada de gente, é um núcleo urbano de camadas de riqueza e de história embaralhadas: torres de aço e vidro disputam exíguo espaço com edifícios residenciais gigantes. Nesse miolo, vão sobrevivendo prédios antigos, cheios de fios enroscados e quase tombando de aparelhos de ar-condicionado pendurados. Uma marca de um dos lugares mais densamente povoados do mundo, em que o preço do metro quadrado é uma pequena fortuna.
Apesar de quase nada ter restado da arquitetura colonial, o passado britânico é visível em toda parte – da mão inglesa para os carros ao hábito de tomar chá preto com leite. Um dos muitos lugares batizados em homenagem à sua majestade da época, o Victoria Peak é um dos sight views mais populares entre os turistas. Do alto dos seus mais de 500 metros de altura, aonde se chega de carro ou a bordo do íngreme Peak Tram, o pico é um oásis no aglomerado urbano, reunindo bosques, jardins bem cuidados, trilhas e represa. Oferece também a oportunidade de enquadrar, magnificamente, os arranha-céus do Central, bairro-sede de bancos e grandes empresas, e os da ponta da Península de Kwoloon, do outro lado da baía, a Victoria Harbour.
Pelos demais portos, baías e quebradas, os roteiros incluem visitas à Causeway Bay, tomada de lojas e gente, à Repulse Bay, um agradável balneário. Ali, de frente para o mar, fica o curioso templo taoísta Kwun Yam, em homenagem a Guanyin, deusa da misericórdia. Em torno, co-mo um parque de diversões supersticioso, espalham-se estátuas de deidades multicoloridas, todas prontas para atender aos pedidos dos chineses atrás de dinheiro, saúde, filhos, segurança para os pescadores etc. O conjunto é completado pela pequena Ponte da Longevidade. Quem a cruza, dizem, ganha três dias de vida.
Não muito longe fica Aberdeen, antigo porto onde moram os tankas, subgrupo étnico do sul da China que tradicionalmente vive da pesca e mora nas próprias embarcações. Nessa espécie de cidade flutuante, que reúne cerca de 6 mil pessoas, ficam restaurantes como o imenso Jumbo, instalado num casco de navio. À noite, suas luzes espetaculosas iluminam o porto.
MODERNIDADE RETRÔ
No fim do dia, a boa é rumar para Kwoloon, que abriga hotéis de luxo, restaurantes, mercados de rua e shoppings centers. Entre eles está Whampoa, um centro comercial abrigado num edifício em forma de navio. Fica no meio de uma espécie de bairro privado, o Whampoa Garden, um condomínio gigante formado por 88 torres, a maioria de uso residencial.
Para ir da Ilha de Hong Kong para Kwoloon, basta pegar o metrô ou, melhor, uma das balsas verde-vintage da Star Ferry. Ao lado do píer de Tsim Sha Tsui fica a antiga Torre do Relógio, onde começa a Avenida das Estrelas – calçada da fama para artistas do cinema local, como Wong Kar-Wai, Jet Li e (claro) Bruce Lee, que ganhou até estátua. Por ali, nas redondezas do Hong Kong Cultural Centre e do domo do Space Museum, espere até as 20 horas – é quando começam os 12 minutos da Symphony of Lights, em que o Bank of China, o HSBC e mais cerca de 40 edifícios modernos do outro lado da baía fazem uma coreografia de luzes coloridas. Melhor ainda quando o cenário é completado com um barco tradicional chinês – o junco –, navegando com suas velas vermelhas pelo Victoria Harbour. E é à noite, de fato, que a atmosfera genuinamente asiática desce sobre Hong Kong.
As camadas de tempo que mesclam a paisagem urbana se manifestam também nessa hora, num jogo de tonalidades entre o moderno e o retrô. Como nos feéricos letreiros de néon refletidos no vermelho-bordô dos táxis e do verde-vintage (aqui também) dos ônibus compactos como jardineiras. Na hora do rush, os honcongueses fazem longas filas nos pontos para voltar para casa; outros abarrotam os muitos restaurantes e bares ou seguem para uma das portinhas que oferecem o tradicional serviço de massagem nos pés. No meio do tráfego pesado, cruzando faixas de pedestres em que os semáforos soam uma matraca quando o sinal abre, açougues e bancas de frutas exibem a mercadoria sob fracas lâmpadas fluorescentes.
Está longe a hora de dormir. Na Temple Street, acontece o famoso mercado noturno, onde se pode pechinchar por mil bugigangas até a madrugada. Afinal, e apesar de tantas diferenças, ainda estamos entre chineses.
A-MA-GAO
Após uma hora de barco, 60 quilômetros a leste, a bússola cultural do viajante vira do avesso. Não muito depois de Pedro Álvares Cabral fundear a nau Capitânia em Porto Seguro, comerciantes e jesuítas portugueses chegaram a A-Ma-Gao – em cantonês, “Baía de Amá’, referência ao Templo de A-Má, deusa do céu, ali construído. Na dicção lusitana, o lugar acabou virando Macau.
Mais uma vez, é preciso apresentar o passaporte para ingressar nessa outra Região Administrativa da China. Foram 450 anos de ocupação portuguesa, que se refletem nas placas públicas bilíngues – em português e cantonês –, na gastronomia que fusiona as cozinhas lusitana e chinesa e, ao contrário de Hong Kong, numa arquitetura colonial persistente. Em alguns lugares, é como estar em Lisboa; em outros, em Paraty ou Ouro Preto.
Perto do píer fica uma das atrações mais visitadas – as ruínas de São Paulo. Da Igreja Madre de Deus, erguida no século 16, resta apenas a fachada barroca, de granito, imponente no alto de uma extensa escadaria. Anexo, fica o Museu de Macau e a Fortaleza do Monte, com seus canhões apontados para o mar que trazia piratas e invasores holandeses de olho no valioso entreposto comercial.
A próxima parada é o movimentado Largo do Senado, na Sé. O calçadão, feito de familiares pedras portuguesas brancas e pretas, abriga prédios históricos como a Santa Casa de Misericórdia e a sede dos Correios, além de lojas chiques e escritórios da administração pública. Em muitos imóveis, a típica azulejaria lusitana.
Organizado, o largo contrasta com as ruas próximas, onde a bagunça vista em Hong Kong dá o ar da graça – nos prédios antigos com varandas inteiramente gradeadas, nos fios de ar-condicionado emaranhados e, aqui, em uma profusão de scooters estacionadas nos becos. China também, afinal.
Para completar o mix cultural da paisagem, adicione uma extravagante pitada de Las Vegas. Pequena, com cerca de 600 mil habitantes, Macau tem uma economia que depende quase que inteiramente do turismo e dos seus famosos cassinos, os únicos em toda a China. Parte dos cafonérrimos complexos hoteleiros dedicados à jogatina se concentra perto da Baía da Praia Grande, onde está o tradicional Lisboa e – impossível de ser ignorado – o Grand Lisboa, projetado na forma de uma flor de lótus estilizada. É o maior prédio local, com 258 metros de altura. Mas perde nesse quesito para a Torre de Macau, cartão-postal megalômano com 338 metros, do lado oposto da baía. Ali fica o spot de bungee jump comercial mais perto do céu, a 233 metros. O preço também é estratosférico: coisa de 420 dólares.
PASTEL DE NATA
Em que pese a visível herança colonial, é difícil encontrar moradores que falem português, hoje uma língua em extinção em Macau. Mas resta mais que arquitetura e ruínas para o macauense se sentir próximo da gente lusitana. Em especial, na gastronomia, síntese do período áureo da expansão ultramarina portuguesa, do Oriente ao Ocidente. Nos restaurantes, acha-se bacalhau mergulhado em azeite, arroz de pato e pratos tempera-dos com curry picante de Goa. Exis te até uma versão local da feijoada, feita com feijões-brancos ou vermelhos.
Mas os chineses, locais e de fora, não resistem mesmo é aos doces. Em padarias como a Koi Kei se acabam com os biscoitos de amêndoa e nozes, doces de caju e de coco, pés-de-moleque e os imbatíveis pastéis de nata, na região chamados egg tart. Tudo saboreado, preferencialmente, com um cafezinho, bebida que só em Macau é capaz de rivalizar com o chá na China.
É possível conhecer quase toda Macau em um bate e volta desde Hong Kong – inclusive gastar seus tostões nos cassinos, que funcionam 24 horas. Mas, se a ideia for experimentar o clima da principal atração turística local, melhor passar uma noite para conferir a pirotecnia e o show de luzes dos hotéis-cassino. No Istmo de Cotai, entre as ilhas de Taipa e Coloane, fica, por exemplo, a filial do The Venetian, da Las Vegas Sands, rodeado de sete resorts – é o maior cassino do mundo e a maior estrutura hoteleira da Ásia. Como o nome sugere, inspira-se em Veneza, inclusive com canais navegáveis. Mais um lugar pra bagunçar as referências culturais do viajante na sempre iluminada noite da Ásia.
Viagem e Turismo, janeiro de 2017
© Almir de Freitas