Em (e pra lá de) Marrakesh, o sul do Marrocos é uma experiência de cheiros e sabores, em meio a paisagens que temperam tonalidades terrosas e cores vivas, fertilidade e deserto)
Para efeitos de fama, Casablanca pode ter a seu favor o Rick’s Café com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman acompanhando uma canção inesquecível ao piano. Mas a sedução do exótico, que tão bem representa o imaginário sobre o Marrocos, vem do sul, de Marrakesh. Foi lá, por exemplo, que o estilista Yves Saint Laurent e seu companheiro, Pierre Bergé (que também sempre tinham Paris, afinal), compraram uma casa azul-cobalto em meio a um exuberante jardim em torno de uma fonte – uma combinação que se vê com frequência na cidade e além, nas povoações que pontilham o deserto e os inúmeros oásis. Marcas de um país que extrai, como se fosse perfume, a essência das heranças berbere, árabe e mediterrânea, numa paisagem que tempera, na luminosidade quente da África, tonalidades terrosas e cores vivas, poeira e fertilidade.
Totalmente plana, permeada de palmeirais de tâmaras, jardins e casas baixas de cor rosa-ocre, Marrakesh era, até o século 11, mero entreposto de caravanas comerciais. Até que um chefe guerreiro saariano, o almorávida Youssef ben Tashfin, decidiu fundar na planície do sopé da Cordilheira Atlas a sua capital – a dali seguir na jihad de conquista da Península Ibérica. É nesse núcleo antigo, cercado por 19 quilômetros de muralhas, que se encontra a Medina, o coração da cidade.
Para começar a explorá-la, siga a muvuca. Ela começa na Jemaa El-Fna, originalmente praça de execuções de condenados – em árabe, o nome do lugar significa “congregação dos mortos”, mas o espírito, hoje, é totalmente oposto. “É provavelmente a praça ao ar livre mais fascinante do mundo”, escreveu Paul Bowles, viajante apaixona-do e autor do romance O Céu Que Nos Protege. Vasta, ruidosa, cheia de gente, reúne músicos, dançarinos, artistas de teatro, tatuadores de hena, macacos treinados e encantadores de serpentes – tenha sempre alguns dirhams à mão, se quiser fotografá-los, para não levar uma bronca em áspero árabe.
De um lado da praça, vê-se o minarete de 77 metros da Mesquita Koutoubia, de onde o muezim chama os fiéis para as cinco orações diárias dos muçulmanos, entoando um canto monocórdio e hipnótico que, de alguma forma, se sobrepõe à agitação. Datada do século 12, a mesquita era cercada na sua origem por vendedores de livros – daí o nome, que significa “livreiros”.
No outro lado estão as ruas estreitas onde se erguem os souks. Mercados de escravos, ouro e marfim do passado, o labirinto formado por centenas de lojas é uma experiência para os sentidos e lugar de perdição para quem não resiste a carregar sacolas. De tudo se vende um pouco: túnicas de linho, cafetãs, tapetes, colares e braceletes de âmbar e coral, tagines, copos de chá, bolsas de couro, pufes, almofadas de camurça e as desejadas babouches – os pontudos chinelos de couro coloridos. Os preços variam de acordo com a qualidade da mercadoria e a habilidade do comprador em pechinchar. Negociar combos de produtos facilita a tarefa, mas, com resolução e firmeza, se pode reduzir a mais da metade a pedida inicial por uma simples babouche.
Nas bancas de especiarias, os temperos expostos, alinhados em perfeitos cones coloridos, servem de ilustração aos cheiros que se misturam no ar – cedro, óleo de argan, extrato de rosa, flor de laranjeira, cúrcuma, chá de menta… Num lugar hiperestimulante assim, é fácil se perder (ter um guia é uma ideia a ser considerada) e, distraído, ficar no caminho das bicicletas e scooters que, apesar do espaço reduzido e da quantidade de gente, circulam velozmente. Cuidado. E também com os batedores de carteira.
Em lugares menos ansiosos, outras preciosidades. Ocultos atrás das paredes da Medina estão os riads, casas e palacetes mouriscos privados, caracterizados por um pátio a céu aberto no centro, e, nele, uma fonte e um jardim. Entre os edifícios públicos, chama a atenção o Palácio da Bahia (“Belo”, em árabe, coisa que os baianos já sabem), um espetáculo arquitetônico de 80 mil metros quadrados, com jardins, salões, pátios e 150 quartos, onde hoje a família real se instala quando está em Marrakesh. Outro é a Madraça Ali ben Youssef, que já foi o maior centro de estudos do Alcorão no norte da África. Fundada no século 14, abrigava cerca de 900 estudantes em seus quartos, que, espartanos, contrastam com o pátio deslumbrante em suas cúpulas, paredes coloridas de mosaicos, janelas e estruturas de cedro.
Fora da Medina, as multidões seguem para o Jardim Majorelle – aque-le que Saint Laurent e Bergé adquiriram em 1980. Todo mundo quer ver o discreto memorial em que as cinzas do estilista foram espalhadas, entre mais de 300 espécies botânicas. Ao lado fica o recém-inaugurado Museu Yves Saint Laurent, que agora faz par com outro mais tradicional, o Berbere, dentro do próprio jardim. Instalado no estúdio do proprietário original, o pintor francês Jacques Majorelle, o pequeno espaço dá conta da sofisticação e do impressionante bom gosto das roupas e joias dos nativos da região – e que, obviamente, encantaram YSL.
FERTILIDADE LISÉRGICA
Quem também se encantou com a cidade nos anos 1960–70 foram os hippies, que para lá rumaram em busca de transcendência e alguma psicodelia lisérgica. Jimi Hendrix ganhou experiência por ali, e Mick Jagger e Keith Richards se refugiaram em Marrakesh quando se encrencaram com drogas na Inglaterra (nos anos 90, atrasadões, Jimmy Page e Robert Plant foram dar uma palhinha na Medina junto com músicos locais). Foi nesse contexto que a expressão “estar pra lá de Marrakesh” se consagrou. Mas a viagem, aqui, é só geográfica mesmo.
Deixando para trás a planície em direção ao levante, a boa rodovia N9 conduz o viajante motorizado pelo Passo Tizi n’Tichka, no Alto Atlas, ao longo dos sinusos 200 quilômetros que separam Marrakesh de Ouarzazate. No caminho montanhoso, as paisagens desérticas se alternam com florestas de cedro e pequenas cidades berberes vermelho-adobe, onde as casas parecem querer se camuflar na paisagem. Em todo o país, as exceções nessa paleta são os muros das escolas para crianças, coloridos como arco-íris.
Ouarzazate tem como cartão de visitas o impressionante Alcázar (cidade fortificada) Aït-Ben-Haddou, que, a distância, parece esculpido na colina em que está assentado, acima do Rio Ounila. Datado do século 8, Patrimônio Mundial pela Unesco, o complexo de barro, madeira e palha já serviu de locação para filmes como Lawrence da Arábia, Gladiador e a adaptação de Bernardo Bertolucci para o já mencionado O Céu Que Nos Protege.
A inclinação da região para o cinema não passou despercebida em Ouarzazate, que, além de “porta do deserto”, leva também a alcunha de “Ouallywood”, com quatro grandes estúdios à disposição dos produtores que quiserem rodar uma história das mil e uma noites. E não só: no maior deles, o Atlas, já se ergueram cenários para Kundun, Babel e Game of Thrones – está lá, montadinha, a cidade em que Daenerys Targaryan (filha da tormenta, a não queimada, mãe dos dragões etc.) conquista seu exército de imaculados.
Cinematográfico também é caminhar a pé pelo Oásis de Skoura. Colado ao histórico Amridil – o mais famoso dos casbás (castelos fortificados) do Marrocos –, o Palmeraie, de 25 quilômetros quadrados, ganhou o apelido de “oásis das mil palmeiras”. É lá que, com um sistema de canais de irrigação que se serve das águas de degelo do Atlas há séculos, famílias berberes seguem no trabalho árduo de cultivar damascos, maçãs, azeitonas, milho, trigo, amêndoas, romãs, figos, marmelo, além, é claro, de tâmaras. Quase toda a produção abastece o souk local, vendida pelos próprios produtores.
Dali em diante, agora pela N10, casbás e oásis é que não faltam. O vale do Rio Dadès é conhecido há tempos por “vale dos mil casbás” – eles eram erguidos a cada 30 quilômetros para o descanso das caravanas saarianas que seguiam para Marrakesh e Fez. Nessa explosão de fertilidade estratégica, de um país de vocação nômade, lisérgico mesmo é o Vale das Rosas, em Kelaat-M’Gouna. Na primavera, o lugar fica tomado pelos roseirais, que alimentam o comércio de perfume, água de rosas e flores secas – uma atividade que envolve 100% da população local.
Pra lá de Marrakesh também é a visão, à beira da estrada, de Tinghir, um oásis de verde amazônico no vale do Rio Todra. Em torno dele, amontam-se casbás e alcázares, com o vasto deserto e suas formações maciças de pedra estendendo-se num horizonte quase sempre embaçado de areia. Seguindo adiante, não muito longe, ficam as Gargantas do Todra – uma passagem estreita, com o rio mais estreito ainda, no meio de dois paredões de calcário laranja de 300 metros de altura. É cheia de comerciantes e garotos que, em troca de algumas moedas, oferecem aos turistas figuras de animais trançadas com folhas de tamareira.
INCONTORNÁVEL
Mais 150 quilômetros, pela N12, levam a Tafilalet, na província de Errachidia, terra natal dos alauitas, dinastia que ocupa atualmente o trono do país. Na maioria das vezes, a palavra “incontornável” bem que poderia ser contornada em relatos de viagem, mas, para quem desse ponto quiser seguir mais a leste, ela se aplica à perfeição: adiante, numa direção, está Erfoud, a capital das tâmaras; na outra, a aldeia de Merzouga e, depois dela, já nos limites da fronteira com a Argélia, Erg Chebbi, o maior conjunto de dunas do Saara no Marro-cos. Literalmente, incontornáveis.
Diferente do que popularmente se acredita, as dunas – no plural, areg – se avolumam apenas em, aproximadamente, um quarto do Saara: a maior parte é formada por um solo árido pedregoso, a hamada. Mas tamanhos e comparações aqui não são questão relevante: estendendo-se por 11 países, o maior deserto quente do mundo é uma imensidão de 9 milhões de quilômetros quadrados – maior que o Brasil, equivalente em tamanho aos Estados Unidos e ainda mais gigante no imaginário que precede a visão que se tem das dunas douradas a distância, novidade de um cenário ao qual se juntam as conhecidas palmeiras e os muitos rebanhos de dromedários.
Daí que, quando os carros 4×4 deixam a hamada de pedras negras, vul-cânicas, em Merzouga e adentram esse território de livros infantis, filmes de sessão da tarde e documentários do Discovery Channel, a primeira dificuldade é de escala: é realmente difícil medir a altura das dunas e mensurar as distâncias. Um curto passeio (incontornável?) no lombo de um dromedário durante o pôr do sol é capaz de fazer o acampamento diminuir de tamanho rapidamente às suas costas.
Tudo ao mesmo tempo que, na hora em que os ventos frescos começam a soprar do nordeste, a luz ao redor muda a cada minuto, constante e dramaticamente, refletida numa paisagem reduzida a um horizonte ondulante sob o céu que marcou a obra de Paul Bowles. “O céu saariano”, anotou ele, “é como um quadro-negro no qual nada se escreveu. Podemos admirá-lo pela intensidade e luminosidade do seu azul, mas não temos pressa alguma de o ver porque sabemos que ele não mudará.” O absoluto que, raramente, nos é permitido conhecer.
Viagem e Turismo, novembro de 2017
© Almir de Freitas