Em seu último romance, Norman Mailer defende a existência do mal e coloca um demônio por trás das ações de Adolf Hitler
Na infância, ele era chamado carinhosamente de Adi. O pai, Alois, era um funcionário graduado da alfândega. Um homem severo, mulherengo e um pouco dado à bebida, mas nada que comprometesse suas obrigações profissionais e de chefe de família. A mãe, Klara, era religiosa e extremamente amorosa com os filhos. Não era uma família muito diferente de outras tantas existentes no Império Austro-Húngaro em fins do século 19. Como as outras, mergulharia no anonimato da história se o pequeno Adi não se tornasse, no futuro, o responsável direto pela morte de 40 milhões de pessoas. O diabo, contudo, já tinha evidências do horror que estava por vir antes que o mundo viesse a conhecer a identidade da criança, Adolf Hitler (1889-1945).
É um demônio, justamente, o narrador de O Castelo na Floresta, último romance do escritor e jornalista americano Norman Mailer, morto no mês passado, aos 84 anos de idade. A questão que permeia o livro, lançado agora no Brasil, é, no fim das contas, a mesma que vem obcecando intelectuais em geral, e historiadores em particular, desde a Segunda Guerra Mundial: quais foram as condições e os fatores que propiciaram o surgimento do monstro? O fato de o narrador escolhido ser um demônio já dá uma pista da intenção de Mailer. Sua leitura da história, ainda que numa obra de ficção, é tão singela quanto polêmica: a de que o mal existe – e só isso pode jogar alguma luz no mistério que envolve Hitler.
Vencedor do Prêmio Pulitzer de reportagem duas vezes, Mailer recorreu a uma pesquisa respeitável para recriar o ambiente de Hitler e seus antepassados – dos miseráveis vilarejos austríacos de Spital e Strones, ao norte do Danúbio, à cidade de Linz, perto da fronteira alemã. Os cenários e os personagens são bem convincentes, embora, naturalmente, todo o resto seja ficcional. Em meio à história, ficamos sabendo que nosso demônio-narrador é uma espécie de executivo menor de uma corporação – o Mal – dedicada a recrutar “clientes” para o seu negócio: extinguir a humanidade. Contra eles lutam, previsivelmente, os anjos, chamados pelos demônios de “cacetes”. Estes, por seu turno, trabalham para Deus, ou, para o narrador, “D.K.”, iniciais de Dummkopf (“imbecil”).
Os críticos do romance acusaram Mailer de promover uma espécie de absolvição de Hitler, uma vez que se poderia creditar toda a fonte do mal ao diabo. É uma acusação possível e até esperada, mas é preciso reconhecer que o autor fez de tudo para escapar dessa leitura. Seu narrador é um demônio de recursos limitados, sujeito a rebaixamentos na hierarquia, que responde a quem ele chama de “Maestro” – alguém que ele, na sua ignorância, nem pode garantir ser o próprio Satanás. Não se trata, portanto, de uma caso de possessão. É algo mais complexo e, em certo sentido, mais sinistro.
DRAMA DE SANGUE E PSICANÁLISE
No quebra-cabeças da formação de Hitler, a influência maligna é uma peça fundamental, mas não a única. Às intervenções do demônio (que não são muitas, na verdade), ele combina os fatos reais coletados em sua pesquisa e, principalmente, magnifica rumores que cercam a história de Hitler. O mais importante deles diz respeito à origem do ditador nazista.
De imediato, o demônio descarta a hipótese de que Hitler possuía sangue judeu. Segundo essa teoria, a avó do ditador, Maria Anna Schicklgruber, teria engravidado de um judeu chamado Frankenberger, para quem trabalhava como criada. Isso explicaria por que o pai de Hitler, Alois Schicklgruber, foi registrado como “ilegítimo”, usando na juventude apenas o sobrenome da mãe (mais tarde Alois pediria para usar o do suposto pai, Hiedler, grafia que, numa transcrição em cartório, virou Hitler). Apreciada por antissemitas de todas as extrações, essa fantasia tem pouco crédito entre os historiadores sérios. E, claro, é rechaçada pelos judeus.
Mailer, que era judeu, optou por outro caminho. Rejeitado pelo pai beberrão, Alois foi criado pelo tio, Johann Nepomuk, e teria concebido Hitler com uma das filhas do pai adotivo, Klara Poelzl. O que só o demônio pode “revelar” é que, na verdade, Alois era pai de Klara, fruto de uma única relação que ele havia tido com sua irmã de criação, Johanna. Um caso de incesto de primeiro grau – o que os alemães chamam de dramatik des blutes, drama de sangue.
Por incrível que pareça, não é uma hipótese inverossímil. Alois, apesar de já estudar em Viena, pode realmente ter encontrado Johanna na época, e tinha idade suficiente para ser pai de Klara – 23 anos a mais. De novo, contudo, a eventual deformação genética não serve como explicação. O incesto entra nesse quadro apenas como uma peça adicional do quebra-cabeça, servindo mais como um artifício que atende à estrutura do romance. Pois, diz o demônio, os filhos concebidos em um incesto eram “clientes” promissores. O Maestro ficaria muito interessado naquela família austríaca aparentemente normal.
Interessado, Satanás envia seus subordinados para que acompanhem de perto a trajetória de Alois, Klara e de sua prole trágica. Os três primeiros filhos do casal morrem prematuramente de difteria. O fato terá grande impacto na mãe, que se dedicará a cobrir de afagos os sobreviventes, e pesará no complexo perfil psicológico do pai — de longe, ele é que tem o retrato mais bem elaborado do livro. O demônio-narrador gastará grande parte do romance explorando esse terreno, e é mais do que evidente o empréstimo às teses freudianas — embora ele diga que Freud só havia chegado perto da verdade porque ignorava o embate entre eles e os “cacetes”.
Essa abordagem psicanalítica é crucial para as intenções de Mailer, mas não é, diga-se, o aspecto mais brilhante do livro. Além de gastar exaustivas páginas descrevendo a atividade de apicultura do aposentado Alois, o escritor recorreu a modelos esquemáticos para acompanhar a evolução de Adolf. Ele esmiúça a fase anal do protagonista, mostra seu óbvio Complexo de Édipo e explora os sonhos como momentos privilegiados para a formação da psique – um momento em que, justamente, os demônios podem intervir. Numa passagem, por exemplo, Alois é obrigado a se livrar de uma de suas duas colméias, matando as abelhas com gás. À noite, o demônio “grava” um sonho em Adi; nele, seu pai lhe pede para contar cada uma das abelhas mortas, e o menino de 6 anos descobre ser capaz de contar até 4 mil. O narrador, o demônio, diz que o leitor não deve se impressionar com a menção ao gás e à montanha de cadáveres, pois isso por si só não explica o que viria. Uma espécie de pedido de desculpas de Mailer ao leitor, pela obviedade da imagem.
Outras lendas são agregadas, sempre no propósito de dar suporte aos elementos da narrativa. Como consequência do incesto, Hitler possui, no romance, apenas um testículo (monorquidismo). A hipótese surgiu após a autópsia que os soviéticos fizeram em 1945 no cadáver carbonizado encontrado no bunker onde Hitler se suicidou, em Berlim. Há quem diga, contudo, que o testículo pode ter sido retirado para deter uma sífilis avançada. De qualquer modo, existem dúvidas se os restos eram mesmo os do ditador. O suposto homossexualismo – uma tese defendida, por exemplo, pelo historiador alemão Lothar Machtan no livro O Segredo de Hitler – é afirmado de maneira rápida, mas contundente, com sugestão inclusive de pedofilia.
O MAL, ENTÃO, EXISTE?
Em entrevistas sobre o livro, Mailer afirmou que realmente acreditava na natureza satânica de Hitler. O ditador alemão seria, assim, uma resposta do mal a Jesus Cristo – narrador, por sua vez, do romance anterior de Mailer, O Evangelho Segundo o Filho (1997). Mas, ao expressar as limitações do mal, submetido a uma burocracia literalmente infernal, o próprio escritor demonstra que isso é insuficiente para caracterizar Hitler como um anticristo. O mesmo se aplica aos eventuais fatores genéticos e psíquicos. A formação intelectual e a influência do meio antissemita da Viena do início do século 20, apenas esboçados neste romance, seriam explorados na sequência que o escritor pretendia publicar em dois volumes.
Resta uma sensação incômoda de imponderável, como se nem o demônio pudesse explicar o caso de Hitler. No romance, a malignidade do ditador passa pela sua própria humanidade — deformada, é verdade, mas ainda assim essencialmente humana. A vaidade, a autocomiseração e os rancores do pequeno führer são, como dizem os adágios cristãos, portas de entrada para o diabo. Mas talvez vá além disso.
A certa altura, o demônio-narrador de Mailer diz que, embora saiba explorá-lo, nunca conheceu o amor. Adi, por seu turno, não só não soube reconhecer o amor que recebeu como o distorceu. As razões para isso se abismam em trevas que nem mesmo Satã, que modelou o monstro, poderia compreender por completo. “O que permite a sobrevivência dos demônios”, escreve o narrador, “é que eles são suficientemente sábios para compreender que não há respostas, apenas perguntas.”
BRAVO!, dezembro de 2007
© Almir de Freitas