Homem em Queda retrata os acontecimentos do 11/9, um dia para o qual toda a obra de Don DeLillo parecia apontar
Em 1997, quando Submundo chegou às livrarias dos Estados Unidos, Don DeLillo já tinha fama de paranóico. Ao longo das mais de 800 páginas do livro, uma espécie de romance-compêndio de todos os temores, o escritor revirava a lata do lixo da Grande América nascida na Segunda Guerra Mundial, mostrando que o mal nasce da própria opulência. Na capa daquela edição, uma foto mostrava o World Trade Center com um cemitério em primeiro plano. Quatro anos depois, quando os aviões se chocaram com as Torres Gêmeas em Nova York, os americanos assistiriam não apenas a uma profecia aparentemente cumprida, mas sobretudo à materialização de todos os seus medos, muitos deles anunciados por DeLillo.
De fato, o 11 de Setembro é o evento para o qual toda a obra de DeLillo, em sua paranóia, parecia destinada. “O depois era isso. Oito anos atrás eles puseram uma bomba numa das torres. Ninguém perguntou: e depois? Depois foi isso. A hora de ter medo é quando não há motivo para ter medo. Agora é tarde demais.” A fala é de uma personagem de Homem em Queda, romance do escritor que sai agora no país. Ela ilustra a percepção de alguém que havia se acostumado a apanhar os sinais de mau agouro que rondavam a América. “Tarde demais”, o momento da queda é, depois de consumada a tragédia, o que mais lhe interessa.
Tudo isso ajuda a explicar também porque Homem em Queda é uma virada na literatura produzida até agora sobre o tema. Autores como Jonathan Safran Foer (Extremamente Alto & Incrivelmente Perto), Ian McEwan (Sábado) e John Updike (Terrorista) já tinham explorado as consequências psicológicas do 11 de Setembro. Já DeLillo é o primeiro autor de peso a colocar os acontecimentos da tragédia no centro da narrativa. Fantasia tanto o pânico das vítimas dentro das torres nos momentos que seguem ao impacto quanto o treinamento e as motivações de um dos terroristas, transformado em narrador em algumas passagens. Se DeLillo não abre mão de estudar as consequências dos atentados (porque isso ainda é mais importante que qualquer “ação”), é obrigado a fazê-lo a partir de sua própria narrativa. Ou seja, em vez de tecer um arrazoado sobre o significado do 11 de Setembro na cultura ocidental, ele mostra de maneira crua como o fato mudou a vida de seus personagens.
INSTANTÂNEOS DE TERROR
Muitos dos romances de Don DeLillo são elaborados a partir de fotografias de acontecimentos marcantes. Um de seus livros mais conhecidos, Libra (1988), nasceu de uma imagem de Lee Harvey Oswald no quintal de sua casa, com um revólver no coldre, um jornal numa mão e, na outra, o fuzil que mataria o presidente John Kennedy meses depois da foto, tirada em 1963. Ali, estava o sinal oculto, mas contundente, da tragédia anunciada. A inspiração iconográfica é mais complexa em Mao II (1991), o livro que emprestou a DeLillo uma certa autoridade no tema terrorismo. São duas as imagens. Uma delas é uma foto de um casamento coletivo celebrado pelo reverendo Moon. A outra é um retrato de 1988 do recluso J. D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio, aterrado e furioso quando flagrado pelos fotógrafos em seu retiro do mundo em New Hampshire. A combinação entre as imagens deu o mote para a história do escritor recluso Bill Gray. No romance, DeLillo apresenta a ideia de que o “futuro pertence às multidões” e que a capacidade de fazer a narrativa do mundo não está mais com o artista — mas sim com o terrorista.
Homem em Queda também foi concebido a partir de imagens — as quais, combinadas, reavivam a proximidade entre arte e terror. A primeira é uma foto, publicada pelos jornais de todo o mundo, de um homem de valise na mão, coberto da cabeça aos pés de pó, em meio à paisagem devastada de Manhattan. No romance, ele é o advogado Keith Neudecker, que após o atentado retorna um tanto mecanicamente para a casa de sua ex-mulher, envolve-se emocionalmente com outra sobrevivente e gasta seus dias rodando cassinos, jogando pôquer.
Outra imagem mencionada no livro é uma foto tirada exatamente às 9h41 do dia 11 de setembro. Ela mostra um homem caindo de uma das torres. Está de cabeça para baixo, uma das pernas dobradas. Contudo, o “homem em queda” do título não é ele. Trata-se de um artista performático chamado David Janiak que, preso por um cinto de segurança, simulava, nos meses subsequentes aos atentados, quedas de viadutos e prédios diante de platéias pegas de surpresa e, não raro, iradas. O personagem, acusado de oportunista, remete a um artista real, Kerry Skarbakka, que com a série de fotos Life Goes On causou furor nos Estados Unidos anos atrás, embora ele jure ter começado o trabalho antes do 11 de Setembro.
O ARTISTA DO CORPO
A linguagem do corpo, e em especial as artes performáticas, é uma outra presença constante nas obras do escritor, especialmente as mais recentes, e estão ligadas à mesma obsessão pela imagem e à reflexão sobre o papel do artista. O caso mais notório é o da personagem principal do minimalista A Artista do Corpo (2001), em que a abordagem da linguagem é central. No livro, Lauren Hartke é a silenciosa artista performática que se fecha para o mundo após o suicídio do marido. Seu corpo, junto com a relação que estabelece com um misterioso personagem, é a chave para a compreensão da dimensão de seu luto.
A arte performática também aparece em Cosmópolis (2003), um retrato apocalíptico do mundo financeiro de Manhattan. Entre o sem-número de obstáculos que enfrenta a bordo de sua limusine para conseguir cortar o cabelo em um único dia em Nova York, o milionário Eric Packer se depara com uma multidão de corpos nus inertes, como numa instalação do artista plástico Spencer Tunick.
Coincidência ou não, o corpo é ainda o veículo, em Homem em Queda, para DeLillo dizer que o medo talvez não seja algo do passado, como queria acreditar aquela sua personagem mencionada no início deste texto. No hospital, o advogado Keith Neudecker ouve do médico que o atende que às vezes, meses depois, surgem nos sobreviventes dos atentados calombos nos seus corpos. “Descobrem que a causa é fragmentos, fragmentos mínimos do corpo do terrorista suicida. (…) O corpo dele é reduzido a pedacinhos, e fragmentos minúsculos são lançados com tanta força e velocidade que se cravam no corpo das pessoas que estão por perto. (…) Chamam isso de estilhaço orgânico.”
Não acabou ainda, nunca acaba. Para um paranóico como DeLillo, nunca é tarde demais para ter medo.
BRAVO!, outubro de 2007
© Almir de Freitas