Em O Caçador de Autógrafos, autora inglesa segue explorando a confluência de culturas numa escala globalizada
Já faz certo tempo, em 1972, Umberto Eco traçou, como que numa brincadeira (“mas nunca ninguém disse seriamente que os brinquedos são inúteis”), um paralelo entre a Idade Média e os dias que corriam. Quando escreveu A Nova Idade Média, era outro o mundo: a União Soviética e a Guerra Fria ainda existiam, a economia de mercado era impensável na China maoísta, a internet e a clonagem eram coisa de ficção científica (se tanto) e o terrorismo islâmico não passava de (mau) augúrio. Mas o autor já identificava um movimento de “bárbaros” — asiáticos, latinos, africanos — em direção ao núcleo do Império ocidental, criando uma nova e nada tranquila civilização multicultural e multirracial.
A se levar em conta a literatura, parece que chegaram e se instalaram de vez. E foi na Grã-Bretanha, a grande potência colonial do século 19, que começaram a surgir os personagens e as obras dessa miscigenação de proporções globalizadas. Entre imigrantes e filhos de imigrantes estão nomes como os de Salman Rushdie (Índia), V. S. Naipaul (Trinidad e Tobago) e Monica Ali (Paquistão). No ano de 2000, Zadie Smith, uma jovem de pai inglês e mãe jamaicana, entrou nesse grupo com a publicação de Dentes Brancos. Dois anos depois confirmou o sucesso com O Caçador de Autógrafos, romance que está sendo lançado agora no Brasil.
A receita dos dois livros é praticamente a mesma — o que faz com que tenham os mesmos méritos e fragilidades. Se no primeiro misturavam-se num bairro pobre de Londres um bengali, uma jamaicana, uma testemunha-de-jeová, um muçulmano e um cientista judeu, O Caçador de Autógrafos tem como protagonista Alex-Li Tandem, um inglês meio judeu, meio chinês que vive da compra e venda de autógrafos. Convivendo com ele, também num subúrbio de Londres, estão seu melhor amigo, Adam, e a namorada, Esther, irmãos negros judeus emigrados dos Estados Unidos, o rabino Rubinfine e Joseph Klein, o gói da turma.
A tentação nesse tipo de ficção seria partir para uma espécie de novo naturalismo, denunciando o racismo e o preconceito contra imigrantes pobres. Tudo verdade, mas Zadie Smith não quer ser um Charles Dickens de turbante rosa. Interessa mais identificar as referências culturais que se cruzam não apenas na convivência entre essas pessoas, mas também as que são despejadas cotidianamente sobre elas pelos meios de informação. Vale dizer: são narrativas que buscam identificar a aproximação (inevitável) entre culturas diferentes, não defender a preservação (impossível) dessas diferenças num mundo cada vez mais cosmopolita.
Para não ficar presa aos guetos raciais, Zadie Smith lança mão de elementos universais que possam traduzir esse gigantesco movimento de integração. Em Dentes Brancos ela já havia adicionado aos dramas étnicos uma trama de clonagem; em O Caçador de Autógrafos, coloca em primeiro plano o fascínio por celebridades. Alex-Li Tandem, ainda que tomado pela compulsão de dividir tudo no mundo em “judeu” e “gói”, está mais preocupado com o autógrafo raríssimo de uma estrela reclusa de Hollywood, Kitty Alexander, uma versão ficcional de Greta Garbo.
Smith usa e abusa de recursos gráficos (a Árvore das Sefirot da Cabala e o MSN Messenger ajudam) e tenta manter a leveza e fluidez do texto — embora, é preciso que se diga, seu humor seja sofrível, e sua técnica, deficiente em muitos aspectos. Mas não é pouco que se disponha a tentar vislumbrar o potencial de transformação cultural nestes tempos inegavelmente turbulentos — uma nova “idade das trevas”, talvez, com a ruína dos velhos valores ocidentais, a ameaça dos “infiéis” muçulmanos e a sombra do crescimento do império chinês. Os mesmos chineses, aliás — nos informa Umberto Eco em sua “brincadeira” —, que desejam aos inimigos a possibilidade de “viver numa época interessante”.
BRAVO!, maio de 2006
© Almir de Freitas