Em O Deserto dos Tártaros e Um Amor, relançados no Brasil, Dino Buzzati busca o extraordinário que nasce do cotidiano
A literatura do italiano Dino Buzzati (1906-1972) é cheia de armadilhas. Para quem ainda não a conhece, as imagens que ilustram este texto – feitas pelo próprio autor – podem sugerir que ela seja marcada a ferro pelo grotesco ou pelo fantástico. Não deixa de ser verdade, mas apegar-se demasiado a essa percepção inicial é o caminho mais curto para o erro, e comparações já feitas com outros autores, como Franz Kafka, Edgar Allan Poe e Jorge Luis Borges, são úteis apenas para demonstrar mais suas diferenças que semelhanças. Buzzati – como esses outros autores, aliás – não pode simplesmente ser colocado no escaninho dos que exploraram o extraordinário. Nele se destaca sobretudo a busca do mágico e do absurdo que, quase invisíveis, brotam do ordinário das nossas vidas – tão comuns, contraditórias e breves.
Romancista, contista, jornalista, dramaturgo, poeta, libretista de ópera e pintor, Dino Buzzati fez do domínio dessas muitas linguagens o instrumento para perscrutar as complexidades do ser humano. Dois de seus romances, O Deserto dos Tártaros e Um Amor, recentemente reeditados no Brasil, evidenciam a singularidade de uma obra que foge à maquinaria das qualificações rápidas. Dos rincões distantes do primeiro, numa época indeterminada, à Milão cosmopolita e contemporânea do segundo, Buzzati deixa sua rubrica em paisagens e retratos díspares à primeira vista, mas reconhecíveis sob os mesmos traços. E o que se enxerga neles é a solidão, o tédio, as oportunidades desperdiçadas e a angústia de personagens que assistem, com terrível lucidez, à própria vida que se esvai.
Publicada em 1940, sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros é exemplar desse horror cotidiano, dessa luta sem trégua contra o tempo. O livro conta a história do jovem tenente Giovanni Drogo, designado para servir na fronteira norte, uma “fronteira morta”, no isolado forte Bastiani, onde há anos nada acontece e de onde só se avista um deserto sem fim. Nos dias, meses e anos que passam, a única expectativa de Drogo e dos demais homens da guarnição é a incerta e lendária chegada do exército dos tártaros – e nessa espera por uma guerra que insiste em não acontecer depositam todas as esperanças de que suas trajetórias, estáticas, preenchidas por um profundo nada, sejam interrompidas.
Aqui, a paisagem que se desenha pela mão de Buzzati é feita de montanhas escarpadas que se erguem silenciosas e desertos que estendem como vastas solidões. Nessa terra desolada, o homem é escravo de suas próprias fraquezas. Mais de uma vez, Drogo tem a oportunidade de ser transferido, pedir baixa. Mas resiste, reluta, insiste: depois de alguns anos, sente-se deslocado no meio da gente e da cidade, enxerga um véu que o separa das antigas e grandes esperanças. Odiando-se, percebe que se acostumou a fitar o horizonte, na expectativa de que aquele destino a que foi encaminhado tenha algum sentido: é quando a prisão se transforma no único lar possível.
A doença que aflige o homem de Buzzati é mais do que uma insensatez genérica; é, antes, o resultado de uma incapacidade de encontrar um nexo entre desejos, esperanças e o realizável. Condenado pela marcha do tempo, resigna-se, mas prefere agir como se fosse imortal. Desenhado com traços duros, é este o retrato de Giovanni Drogo. “Ilude-se com uma gloriosa desforra a longo prazo, acredita possuir ainda uma imensidão de tempo disponível, renuncia desse modo à mesquinha luta pela vida cotidiana. ‘Chegará o dia em que todas as contas serão generosamente ajustadas’, pensa”. Contudo, nunca terá totalmente a paga pelo auto-engano, a dúvida sempre persistirá: E “se fosse um homem comum, a quem por direito não cabe senão um destino medíocre?”.
Tonalidades como essas também podem ser vislumbradas em seus contos, alguns deles publicados no livro As Noites Difíceis (1971), que também será reeditado. Neles se encontra aquela atmosfera onírica que precipita confusões em torno de sua obra, mas o fato é que quase sempre elas estão ligadas a essa sensação, bastante palpável, de que em algum momento cada homem falha com sua vida. Lá está, por exemplo, o estudioso que passou a vida à procura do sepulcro de Átila e, quando o encontra, percebe que está só, que todos os que o ajudaram na missão estão mortos; ou o herdeiro que descobre, num lugar longínquo da cidade, uma montanha de caixas, cada uma guardando um dia perdido de sua vida; ou, mais ainda, a história do presunçoso Giuseppe Godrin (sintomaticamente, semelhante no nome e na situação com Drogo), que constrói uma torre para ser o primeiro a avistar a invasão dos Saturnos e esquece o mundo que deixou para trás.
Mas nem tudo é exotismo solene em Buzzati. Em algumas narrativas, lança mão do humor; em outras, desce ao grau zero da banalidade do cotidiano, encontrando os mesmos espaços vazios. Não é outra a história de Um Amor (1963), em que Antonio Dorigo (Drogo, Godrin, Dorigo…), um arquiteto lá pela casa dos 50 anos e razoavelmente bem-sucedido, se apaixona por Laide, uma prostituta trinta anos mais jovem. Dizendo-se bailarina do Scala, dançarina de inferninho e modelo fotográfico, Laide – com o ar superior de quem sabe o estrago que pode causar – encarnará para Dorigo o sentido que a vida lhe deve. E por isso ele mergulhará no inferno.
O notável é que, nesse romance, as chaves são invertidas: o protagonista já pressente os dias perdidos de sua vida, e se agarra obcecadamente à paixão por uma mulher que o humilha sistematicamente. O mesmo ocorre tecnicamente. Com uma prosa mais “realista”, o fantástico já não segue os contornos das costumeiras paisagens, mas se expressa na realidade paralela construída pela paranóia de Dorigo. Como se desta vez estivéssemos diante de uma tela de pinceladas furiosas, abstratas na representação agora de uma penumbra que separa o prazer da dor, a dignidade da degradação, o amor do ódio. E, finalmente, a vida da morte. “No meio da noite, olha à sua volta. Meu Deus, o que é essa torre imensa e negra que desponta? A velha torre que sempre ficara confinada no fundo de sua alma quando era rapaz. (…) Lá estava ela novamente, erguendo-se terrível e misteriosa como sempre, ou melhor, até parecia maior e mais próxima. Sim, o amor o fizera esquecer-se completamente de que a morte existia.”
E quem, diante das ilusões e da impotência de Drogo e Dorigo, se sentir agora tentado a imaginar Buzzati como porta-voz de um existencialismo à milanesa, errará de novo. Porque não existem em sua obra categorias ou definições aplicáveis a essas regiões fronteiriças da alma, em que o banal e o fantástico se cruzam, fundindo-se e formando aquela matéria de que não só os sonhos são feitos – mas também, e principalmente, a vigília da vida. Tão insondável e misteriosa – nos breves momentos que deixamos escapar – quanto a eternidade.
BRAVO!, agosto de 2003
© Almir de Freitas