Relançado Aden, Arábia, de Paul Nizan, relato dos anos 30 que se tornou um clássico da contracultura dos anos 60
Em suas Memórias, Raymond Aron lembra da época em que Paul Nizan (1905-1940), então um brilhante estudante da École Normale de Paris, deixou a França por um ano para ser preceptor do filho de um empresário britânico em Aden, um exótico entreposto comercial na Arábia. O ano era 1925, e Nizan recorreu a opiniões de colegas mais velhos antes de aceitar o convite. Apesar das consultas, acredita Aron, a decisão já estava tomada. “Se perguntardes ao pai de família o que deveis fazer”, dizia Nizan, repetindo com ironia as palavras de Georges Duhamel, “eu vos direi: terminai primeiro os estudos. Mas se vos dirigirdes ao homem, ele responderá: parti, meu rapaz, descobri o mundo. Ali aprendereis mais que em todos os livros.” O que quer que significasse “o homem”, o fato é que o rapaz, tão acostumado aos livros, partiu. O relato dessa experiência, publicado em 1932 sob o título de Aden, Arábia, livro que agora está sendo relançado no Brasil, tornou-se uma espécie de clássico marginal dessa geração de intelectuais e, até por isso mesmo, uma das obras mais caras à contracultura dos anos 60 e 70.
Em sua época, contudo, as coisas foram mais difíceis. Na primeira metade de um século duro, dividido entre a urgência de ideologias extremas e de vanguardas artísticas, esse normalista oriundo de família de classe média recriava a seu modo a mística de Arthur Rimbaud, o jovem poeta que, no século 19, trocara a civilização europeia e toda a sua sabedoria e ilustração pelo tráfico de armas na África. “Eu tinha 20 anos, não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”, escreveu Nizan na abertura de seu livro. A sentença tem servido como divisa da obra desse escritor que hoje anda (de novo) um pouco fora de moda. Ancorado aparentemente nesse passadismo algo romântico de matiz antiburguesa, Aden, Arábia caiu inicialmente num longo ostracismo, rejeitado e condenado pelos cardeais do Partido Comunista Francês, com quem Nizan rompeu em 1939, após a assinatura do pacto de não-agressão entre Hitler e Stálin.
E foram justamente esses mesmos elementos que mais tarde transformaram o livro – na sua mistura de testemunho pessoal, ensaio filosófico e literatura – numa das referências da rebeldia juvenil que, na sua utopia existencial e política, pudesse conciliar a revolução social com a do indivíduo. O lema “transformar o mundo, mudar a vida”, dos estudantes rebelados em Maio de 1968 em Paris, não poderia encontrar precedente melhor. Muito além da concepção estética e política adotada pelo comunismo linha-dura da Segunda Guerra Mundial, foi a época em que se acreditou que a subversão da velha educação e dos velhos valores podia “arrebentar as portas do céu”, e a tensão entre a educação livresca e a “da vida”, que tanto dividia Nizan, reencontrou então sua arena privilegiada. À aura arquetípica do artista que renuncia ao mundo, somava-se a do marxista engajado, mas puro.
Houve os que tomaram ao pé da letra essa aventura de um Rimbaud mais político, buscando a pura experiência sensorial como libertação pessoal e, quiçá, coletiva. Não é para menos. Em Aden, Arábia, as descrições são por vezes tão esplendorosas que lembram as de um Marco Polo que se suponha perdido no passado: “De um profundo coração interior sobe o odor das peles grelhadas ao sol dos altos platôs abissínios, sobre o cascalho somali, neste país cujos nomes fariam trabalhar a imaginação de uma criança em uma escola primária. Berberah, Ogaden, Dunkali, Harrar, Modadiscio, Addis Abeba”. Ou: “Sobre essa vida desabrocha o odor rançoso, amanteigado, apimentado, perfumado de incenso, de madeira aromática, esse odor magnífico, inesquecível do Oriente”.
Mas Aden, Arábia não é só generosidade – como não era o mundo de então. Relato de uma viagem “à roda de si mesmo”, o que está em jogo são os sentidos de fuga e libertação, do homem atraído pela, nas palavras do autor, “enorme criatura branca de Arthur Gordon Pym”. No seu itinerário, o aventureiro não coleciona apenas paisagens e sensações exóticas, mas adquire a consciência de sua própria precariedade: “Os verdadeiros viajantes e os verdadeiros fugitivos são testemunhas derrisórias da fraqueza humana”, escreve Nizan, falando primeiro de si mesmo.
Para o escritor político, a constatação é ainda mais dura, e a desmistificação geográfica, cultural e econômica é brutal. “Os habitantes de Aden, como os de Londres e de Paris – que são, de resto, plantas da mesma estufa onde a temperatura faz com que se desenvolvam –, aparecem, param, caminham, choram, desaparecem, são eclipsados sem rima e sem razão.” O “sr. C.”, escreve, o “falso homem de ação” que o havia levado a esse Oriente ilusório, ainda era um prisioneiro dos mercados e dos seus rígidos regulamentos, em que as grandezas são medidas pela quantidade de peles embarcadas, de negócios fechados, de crédito disponível. “É isto: se a gente foge, se a fuga é bem-sucedida no sentido em que os homens das cidades compreendem o sucesso, a gente se torna o sr. C. A gente vira o sr. C. por todo canto. É a última proposta que nos fazem. Mas renunciamos a ser homens.”
Onde, então, a liberdade? Naturalmente, ela já estava na ideia da Revolução, com os múltiplos significados e armadilhas que ela encerrava. Comunista de primeira hora – antes mesmo que seus companheiros ilustres de geração –, Nizan também foi um dos primeiros a pagar o preço por não rezar pela cartilha dominante. Morto logo em seguida – em combate durante a Blitzkrieg nazista contra a França, em 1940 –, teve sua memória proscrita entre os camaradas, acusado de ser “espião”. Não se pode saber que caminho teria trilhado. O que se sabe é que, entre a rejeição e a reabilitação, formou-se, como tantas vezes acontece, uma imagem de Paul Nizan que supera a do próprio escritor.
No prefácio escrito em 1960, quando Aden, Arábia começava a ser redescoberto, Jean-Paul Sartre, amigo de Nizan da época da École Normale, anotou: “Não encontraremos a liberdade perdida a não ser que a inventemos”. Na época, Sartre tratava também de acertar lá suas contas, e não é improvável que tenha tomado a trajetória de Nizan como uma espécie de conto moral em que a morte, quase que providencialmente, livra o personagem de “sujar as mãos” – o que, obviamente, não deixa também de ser uma mistificação. Mas quem há de culpá-lo? Sexagenário em Maio de 1968, quando distribuía jornais maoístas em meio à conflagração, Sartre via no vigor daquele jovem imortalizado pela morte o canal de comunicação com os “novos” revolucionários. É como se Nizan pudesse falar uma língua que ele já não mais possuía, convocando todos ao inconformismo. “Agora, que os velhos se afastem, que deixem esse adolescente falar a seus irmãos”, escreveu, repetindo em seguida a divisa dos 20 anos.
Durou o tanto que podia. Mesmo a “invenção” de 1968 teve a sua ressaca, com muitos de seus líderes ora assumindo o mais puro cinismo, ora adotando os expedientes da velha-guarda. Tantos anos depois, a questão permanece em aberto: onde se encontra a liberdade? Não foram poucos os que tentaram respondê-la, a começar pelo próprio Nizan. Entre a reflexão sobre a morte e a descrição da paisagem que, ainda que belíssima, esconde as mesmas prisões, ela não é mais que apenas esboçada em Aden, Arábia. Mas diz claramente onde não está: é um livro que não condescende com o autoengano diante das aparências. O que é muito. Mesmo zombando dos conselhos de Duhamel, vivendo Rimbaud como farsa, Nizan levou até os cantos mais longínquos – e até o fim – o desejo de vislumbrar uma humanidade que investisse, com o vigor de uma juventude perpétua, contra a marcha indolente da história.
BRAVO!, fevereiro de 2003
© Almir de Freitas