Em Quando a Sombra Descola do Chão, italiano mostra que o passado não serve de bússola para traçar a rota para o novo
Há um momento, indefinível e subjetivo por natureza, em que os sinais de uma literatura que até então pareciam predominantes começam a ficar embaçados, como se se estivesse no limiar de algo genuinamente novo. Mas, de imediato, pouco pode ser demonstrado: como acontece com tudo que é novo, o que surge herda e carrega as marcas das gerações que o precederam, indica um norte, mas não contradiz nem afronta o que se vinha produzindo anteriormente, porque o ser humano, matéria-prima e razão de tudo, permanece mais ou menos o mesmo. Quando a Sombra Descola do Chão(1994), livro do italiano Daniele Del Giudice publicado agora no Brasil, representa um desses momentos, no contexto de um país cujos escritores do fim da primeira metade do século passado tiveram de lidar com uma demasiada humanidade que é mais ou menos, e até um pouco enfadonhamente, igual.
Mas foi-se o século e, com ele, o fascismo na sua forma clássica, a guerra declarada e penosa, a lateralidade em uma Otan que fazia seu sentido. Até as letras da sigla PCI (Partido Comunista Italiano) se desmancharam na história. Nesse contexto, estranha em parte o tema escolhido por Giudice para os seus contos: a aviação. Soa asséptico, quase leviano em relação a uma tradição que produziu uma vasta e rica literatura, boa parte dela reeditada agora no país. Contudo, como seus predecessores, Giudice mostra que os embriões desse novo podem, sim, ser enunciados, em qualquer temática. O que importa, de fato, é como se expressam as dimensões do ser humano em narrativa – na técnica aliada à subjetividade, como se escritor e piloto fossem protagonistas de um mesmo enredo de súbitas e às vezes bruscas transformações. “A corrida da decolagem é uma metamorfose: eis uma quantidade de metal transformando-se em avião por meio do ar, toda corrida de decolagem é um nascimento de um avião, também desta vez”, diz o personagem dos contos do livro, “você a sentira assim, com o assombro de toda metamorfose.”
É nessa metamorfose – mais que metáfora ou alegoria simplória da vida – que Giudice encontra um caminho, uma rota em que aposta todas as suas fichas numa sucessão de sensações em estado bruto, misturadas a uma condição que não permite o erro, que repele a divagação e a contemplação. Mesmo assim, há um lapso de tempo, revelado pelo autor em uma narrativa sutil, que descortina a fronteira tênue, mas decisiva, em que as histórias encontram aquele demasiado humano que existe entre o ser e o fazer: a solidão, o medo, a dúvida, a desorientação e a memória, ingredientes que se encontram num espaço e numa temática que nada tem de superficial.
Desde o início, no conto Por Causa do Erro, é a solidão que dá a tônica desse livro que, aos poucos, vai construindo uma identificação entre escritor e piloto. Na narrativa subjetiva, cheia de cortes de tempo, a brusquidão da transformação dá origem a uma escrita que alterna códigos, mistura visões de instrumentos com a de paisagem, linguagem aeronáutica com a civil. O recurso, a essa altura do livro ainda apenas insinuado, ficará claro mais adiante, no conto Até o Ponto do Orvalho, em que o protagonista, perdido entre “palavras e nuvens”, expressa diretamente o choque entre duas realidades, a da visão do horizonte com a do painel, a da fala simples com a ditada pelo ininteligível manual. Assim, “Treviso Radar, não quero morrer. Repito: não quero morrer”, vira “Treviso Radar, o India Echo November não está mais em Victor Mike Charlie. Pede um Quebec Delta Mike”. Ou, como em Manobra de Vôo, quando fala mentalmente com seu instrutor e, em tom de confissão, busca sua humanidade em meio à parafernália que lhe diz o que é necessário fazer, mas silencia sobre suas fraquezas: “Falo de ‘verdade’ Bruno, apenas porque você insiste que é assim que devemos crer nos instrumentos; mas não deixo de ter um leve estremecimento quando, ao furar as nuvens, adapto-me a considerar ‘verdade’ algumas caixinhas de metal e plástico, montadas no painel; toda vez preciso de um pequeno ato de fé e de um pequeno ato de esquecimento”.
Assim, nesse interstício fugidio – mas palpável pelas palavras e pelos instrumentos – o escritor-leitor se aproxima do piloto num terreno em que se entrecruzam o que é preciso fazer, a banalidade do mundo e a fatalidade que a todo tempo é ameaça. Por todos os lados – na cabine, nos hangares, nas torres de controle, nos campos de pouso, nos céus envolvidos pela neblina ou pelas nuvens, a mesma e grande solidão. Assim se passa em Entre o Segundo 1423 e o Segundo 1797, em que dois fantasmas questionam, na sua linguagem particular, os momentos derradeiros de um acidente com um avião civil. Para que as caixas pretas? O que aconteceu de “verdade” (ela, de novo), no tempo infinitesimal de um avião de passageiros que se espatifa em meio ao gelo líquido dos Alpes? Entre 1423 e 1797, a tradução de tudo: “Estamos caindo”.
Às vezes, não há nenhuma explicação, apenas a marca do mistério que fica na comunicação entrecortada de Unreported Inbound Palermo, outro desastre de aviação civil. “O que sabem os objetos das ações e das tramas? O que sabem dos mandantes e executores? Os objetos estão lá. Seria a história do avião, porque o avião conhece sua própria história; quantos no mundo a conhecem? Na falta de palavras, seria uma história das coisas, história de metal, metal ofensor e metal ofendido (…).” É também na fatalidade que está entre o medo do erro e o sempre cometido que se abrem as portas, paradoxalmente, para a afetividade dos personagens, como é esplendidamente narrado em Pauci Sed Semper Inmites por um veterano de guerra num discurso que mescla as manobras de combate no Mediterrâneo com a memória de uma música, associa-as a uma valsa, à imagem de uma asa pela “visão oblíqua”, a uma matemática intuitiva.
Seria inexato, pela previsibilidade do personagem, atribuir a ele e ao escritor um exorcismo qualquer do passado. Esta é a sobra daquilo que se materializa, aquela sensação indefinível que volta, de uma transformação, de uma metamorfose. Como já se enfatizou, o maior trunfo de Quando a Sombra Descola do Chão é, sem deixar de ignorar o passado, não se deixar guiar por ele. O resultado disso é que os tradicionais modos de manipular alegorias e metáforas não são, em sua prosa, necessários. O cruzamento de significados existe, mas não por meio de símbolos fixos, e sim das associações livres de um personagem que, apesar de munido de um plano de vôo, parece não estar preocupado com um final, uma moral, um sentido, apenas com um campo de pouso que está em algum lugar. “(…) Para chegar onde eu quero chegar, coloco a proa numa direção totalmente outra, segundo uma rota imaginária que leva alhures, a um lugar que existe somente no magnetismo terrestre, nos cálculos e no vento. Não tenho outro modo de coincidir com meu destino.”
No fim, é esse destino que é interrogado. A identificação piloto-escritor, sugerida durante todo o tempo, se revelará literal no último conto, Dupla Decolagem ao Amanhecer, em que narrador e instrutor, ao longo da costa toscana em direção à Alghero, especulam, cada um em sua própria solidão, o que teria acontecido naquele dia 31 de julho de 1944, quando o P 38 Lightning de Antoine de Saint-Exupéry não mais voltou depois de uma decolagem. “Para além dos aviões, da correspondência e da guerra, seus livros são uma meditação sobre a possibilidade de um Humanismo em pleno século 20, a contestação de um coletivismo como pura soma aritmética das individualidades, uma busca metafísica do Ser na solidariedade com todos os outros”, diz o piloto-escritor Del Giudice. “Ao pôr-do-sol”, encerra, “depois da aterragem, daremos passos longos e elásticos para relaxar dos esforços do comando. Sorriremos, novamente reunidos a nossa sombra.”
BRAVO!, setembro de 2001
© Almir de Freitas