Pós-verdade e pós-ficção

O fato, que antes imaginávamos sólido, desmanchou-se no ar, e a própria ideia de ficção foi reconfigurada na disputa cotidiana de narrativas

Que a Verdade, assim com maiúscula, não goza de prestígio faz umas boas décadas, sabemos. Mas na aurora do pensamento ocidental ela expressava um conceito ético vital, fundamento de um racionalismo que não comportava dúvidas ou formas mitigadas, como na mimetização do real feita pelos artistas. Daí que poetas não tivessem ingresso na República de Platão, livre que seria das “pré-verdades” projetadas para os mortais ignorantes da filosofia, meros escravos agrilhoados numa caverna diante de um teatro de sombras.

O pensamento moderno embolou o meio de campo dessa fábrica de dogmas, mas, como se tivéssemos caído em uma armadilha moral, chegamos ao ponto em que, se a Verdade não existe, então cada um pode abraçar e disseminar a que melhor lhe servir. No novo mundo inaugurado pela internet, é tentador plagiar miseravelmente a alegoria platônica – conosco acorrentados às bolhas das redes sociais, aos grupos de WhatsApp em que essas verdades – desta feita, pós – grassam tremulantes no mundo das aparências virtual.

Nazismo era de esquerda, o “globalismo” é uma estratégia do marxismo internacional, a Terra é plana, o aquecimento global é uma invenção da China, vacinas infantis provocam autismo. Como se todas as nuvens gritassem “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, o lema do partido em 1984, de George Orwell, a mais contundente representação literária que o totalitarismo já teve.

Passado o século do escritor inglês, somos agora assombrados por estratégias difusas de propaganda, em que as mentiras – não apenas repetidas, mas viralizadas – transformam-se em verdades. A chamada pós-verdade foi nomeada pela primeira vez em 1992, em um artigo do dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich sobre o escândalo Irã-Contras no governo Reagan. A incorporação oficial do neologismo à língua aconteceu mais de 20 anos depois, quando, como se sabe, o britânico Dicionário Oxford de Língua Inglesa elegeu post-truth a expressão do ano de 2016.

No verbete, trata-se de um adjetivo “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal”. A eleição de Trump, o Brexit e a estratégica política de disseminar notícias falsas nas redes sociais no mundo todo deram mais que respaldo à definição.

O fato, que antes imaginávamos sólido, desmanchou-se no ar. Se nos tempos de Orwell a verdade era sempre a vítima preferencial em tempos de guerra, agora ela se retira da equação na disputa cotidiana de narrativas em que, como num espelho, a própria ideia de ficção é reconfigurada – era ela, numa visão tradicional da arte, que manipulava as emoções da audiência em busca de uma verossimilhança capaz de suspender as descrenças e levar à catarse, como formulou Aristóteles.

Sobre a gênese, o alcance e a pertinência desse fenômeno, existe uma história – verossímil, ao menos – para contar. E, muito apropriadamente para o tema, mais feita de dúvidas e especulações do que certezas.

SUJEITOS E MODERNIDADES

Em Subjetividade em Tempos de Pós-verdade, publicado no livro Ética e Pós-verdade, o psicanalista Christian Dunker defende que o rebaixamento da verdade decorre da própria crise da modernidade e de sua ideia de subjetividade. Na concepção delineada no século 17 na régua e compasso de René Descartes, não havia como conciliar “evidência material e certeza psicológica”, e a saída, ainda, era abraçar o universalismo.

Esse cenário foi encontrar sua mais autodeclarada superação no fim do século 20, com o pós-modernismo disposto a minar as fundações de uma cultura que se especializara em cânones rígidos – na literatura, por exemplo. Em alta, as narrativas paralelas das minorias esboçaram a ideia, muito familiar até hoje, de que a verdade universal antes pretendida era apenas “variações particulares de subjetividades específicas: branca, ocidental, masculina, acadêmica, economicamente privilegiada”.

Daí surgiram os estudos de gênero e culturais, as políticas afirmativas, o politicamente correto, prósperos nos anos 90 com a vida digital funcionando na velocidade de uma conexão discada. Mas esse contexto promissor durante os anos Clinton, marcado por uma “aliança entre o neoliberalismo econômico de direita e uma pauta comportamental de esquerda”, como diz Dunker, teve seu ponto de ruptura no 11 de Setembro.

A comoção mundial abriu caminho para uma “verdade inflacionada de subjetividade”, e o relativismo cultural sucumbiu à guerra ao terror, alimentada pela verdade das armas de destruição de massa de Saddam Hussein. Nesse ponto, ao mesmo tempo continuidade e negação do pós-modernismo, a pós-verdade seria no fundo uma “espécie de reação negativa àquele, com a subjetividade encharcada de cinismo e irracionalismo”. E a banda larga já dava as suas caras, pronta para viralizar medos, rancores e preconceitos acumulados havia tempos.

As implicações éticas e políticas desse processo são bem conhecidas, com a adicional trama das guerras culturais no varejo. A produção artística em torno das pautas identitárias, vigorosa hoje com seus “lugares de fala”, resiste a essa nova subjetividade, tingida do lado de lá pelo conservadorismo no plano político e pelas teorias conspiratórias na ciência e na cultura.  Mas uma resposta estética ao embaralhamento das fronteiras entre verdade e ficção ainda não passa de um esboço.

TRAGO VERDADES

O escritor Julián Fuks tem uma teoria. Em texto publicado no mesmo Ética e Pós-verdade, defende que a verdade, tão vilipendiada, ganhou uma “centralidade inesperada” na literatura com a pós-modernidade. Os recursos realistas do romance clássico teriam se deparado, enfim, com uma inescapável “insuficiência” da fabulação. Na mão oposta, a verdade estaria trafegando em direção ao ficcional. Seria, ele diz, a “reascensão” do romance.

É esta insuficiência que estaria por trás, por exemplo, da literatura de W. G. Sebald, autor de obras-primas como Os Emigrantes (1992) e Austerlitz (2001). No esforço de buscar uma nova narrativa, menos desgastada, para o horror do holocausto, o alemão encontrou a potência criativa numa mixórdia de biografias, registros factuais e fotográficos que escapavam da frieza historiográfica e da pura fabulação, na apreensão simbólica de um passado que se estende também na paisagem e na arquitetura.

Ensaio, reportagem, relato de viagem e elementos biográficos se combinam aí em um novo pacto com o leitor, numa encruzilhada em que as certezas dão lugar às dúvidas. Aqui, entram em cena não apenas as ambiguidades entre o que é “real” e o que é “ficção”, mas também as técnicas metanarrativas em que estes dois polos são tensionados na construção do texto ficcional – onde se veem mais claramente as digitais do pós-modernismo.

A crítica inclui nessa tendência obras de autores da primeira divisão, como o sul-africano J.M. Coetzee (Verão, 2009) e os espanhóis Javier Cercas (Soldados de Salamina, 2001) e Enrique Vila-Matas (O Mal de Montano, 2002). Todos mais ou menos cooptados – sob protestos dos próprios – para o guarda-chuva da autoficção, definida ainda nos 70 pelo escritor francês Serge Doubrovsky como “variante pós-moderna” da autobiografia.

Fuks, contudo, prefere o termo pós-ficção para identificar essa literatura que estabelece novos princípios de representação de uma verdade. “O passado é uma ficção como o presente é uma ficção, como todos os imperativos éticos e estéticos que aqui se exprimem são ficções, como é ficção a história do romance como gênero, como é ficção a própria concepção de uma era em que a ficção seria impossível, a era da pós-ficção”, escreve ele no ensaio.

Na produção brasileira dos últimos anos, o fenômeno é cristalino. Busque, em A Chave de Casa (2007), a história da família sefardita de Tatiana Salem Levy; em O Filho Eterno (2007), os conflitos internos de Cristóvão Tezza com a chegada de um filho com Síndrome de Down; em Divórcio (2013), a separação litigiosa de Ricardo Lísias. E também, em A Resistência (2015), do próprio Fuks, o exílio dos pais no Brasil, fugindo da ditadura argentina.

Nessa turma, não faltam também protestos contra o enquadramento compulsório na autoficção – e já se contam muitas vozes de quem vê ou a insuficiência ou o esgotamento do gênero. Uma delas é a da escritora e crítica literária Anna Caballé, que, em um texto publicado no El País em 2017, aponta a saturação do Eu na construção do narrador. “O grande problema é, em minha modestíssima opinião, a profissionalização do Eu, como se tudo o que viesse dele tivesse a marca da legitimidade literária. Daí o cansaço com livros cujos autores se transformaram em bufões de si próprios: me olhem.”

SHOW DA VEROSSIMILHANÇA

A crítica é injusta em alguns casos, mas leva o crédito de ressaltar outra característica fundamental dessas novas narrativas: a autoficção ecoaria, ainda que longinquamente, a sofreguidão midiática e narcísica do narrador em prol do espetáculo – esta, outra característica dos tempos de pós-verdade observada por Dunker (leia entrevista publicada nesta edição).

E é precisamente nas narrativas em rede, particularmente as audiovisuais, que a equação realidade, espetáculo e superexposição do Eu se afirma. Populares já há quase duas décadas, os reality shows são talvez a expressão mais radical de uma ficção que apela a um suposto real para engajar a audiência na construção de uma “verdade”. Quem a convencer, leva o prêmio. Em um estudo de 2017, Jeferson Ferro, professor e doutorando em comunicação na UTP, no Paraná, observa que a verossimilhança dessas narrativas não se liga primordialmente com suas regras internas, com seus “encaixes”, e sim com a aceitação pública do que está sendo contado em razão de uma sensação de intimidade que sugere autenticidade.

De maneira análoga, podemos dizer, é dessa maneira que as curtidas “validam” narrativas que se desenham nas timelines do Instagram, por exemplo. Submetidas a recortes de marketing, as realidades ali são construídas tanto pela escolha das imagens – que exibem uma vida interessantíssima – como pelos filtros de edição, que entram em cena quando a luz não colabora com o fotógrafo. Nesse novo pacto entre narrador e audiência, pouco importam os conceitos de falso e verdadeiro se o desempenho da publicação – as curtidas – empresta verossimilhança a esses roteiros.

Há casos mais extremos, em que o show fala mais alto. Abatido no voo de cruzeiro de House of Cards pelo movimento #metoo, Kevin Spacey quebrou um silêncio de meses em dezembro com um vídeo natalino. Não para fazer um discurso com sua versão dos fatos (ora, os fatos), e sim para embaralhá-los, misturando seus percalços com os de Frank Underwood. A ambiguidade começa já no título do vídeo, Let Me Be Frank, com Frank podendo ser tomado tanto como “franco” ou “Frank”.

De saída, fica claro que não há ali nada de “franco”, e não se sabe exatamente qual era o objetivo dessa pequena peça de autoficção. Gerar dúvidas sobre a culpa dele, sugerindo uma volta dos mortos que incluiu Underwood no milagre? Qualquer uma das ressurreições parece pouco provável. O que resta – e isso não é insignificante – é a narrativa que relega a realidade das acusações de assédio sexual a um plano inferior por meio do espetáculo.

Este sim, aprovado: o vídeo colocou Spacey instantaneamente no primeiro lugar dos assuntos mais comentados no Twitter no mundo. Só no YouTube, até o fechamento desta edição, foram mais de 10 milhões de visualizações, com 250 mil “gostei” contra 70 mil “não gostei”. Nesse particular, Let Me Be Frank foi bem-sucedido.

Resta saber se as narrativas da literatura de ficção, como a conhecemos, podem sobreviver nesse ambiente de narrativas midiáticas em rede, esta sim saturada de Eus. A saída, única, pode ter sido sinalizada pelo próprio Fuks: na era da pós-ficção, o romance talvez se construa com as sobras de sua própria destruição no passado, e “o que se cria a partir das sobras só se cria para que seja destruído depois”. Teríamos, então, aí a perspectiva de uma nova sociedade, uma nova literatura e outras tantas verdades e fabulações.

Bravo!, janeiro de 2019
© Almir de Freitas