Odisseia platina, A Uruguaia do argentino Pedro Mairal, explora ao máximo as possibilidades narrativas em um dia da vida de um escritor latino-americano
Não há muitos mistérios em A Uruguaia. Lucas Pereyra, o protagonista e narrador, é um escritor quarentão, superlativo também nas crises — criativa, familiar, financeira. No dia em que a narrativa se desenrola, ele toma o ferry em Buenos Aires com destino a Montevidéu para sacar, cash, US$ 15 mil de adiantamentos de dois livros. Vai tirar o pé da miséria e — de quebra, inconfessadamente — reencontrar a linda uruguaia de 28 anos que conhecera meses antes. Tudo muito banal. Mais ainda se dissermos, desde já, que o dia não será dos melhores.
Não importa. Compacto e virtuoso, o romance do argentino Pedro Mairal não depende de expectativas ou surpresas, nem tampouco de arroubos semi-épicos. Ao contrário: na sua odisseia platina, Lucas é uma espécie de Leopold Bloom na pele de um rapaz latino-americano, excepcionalmente com dinheiro no banco. Mas ainda sem parentes importantes, vindo do interior e pensando em beijar alguém (ou mais que isso, na verdade) quando ninguém vê.
Como costuma acontecer em obras dessa linhagem, o protagonista começa o dia cedinho. Catalina, a mulher, fica na cama com o filho, Maiko, e para ela são ditas as primeiras palavras do romance: “Você disse que eu falei dormindo”. O quê? “O mesmo da outra vez: ‘guerra’”. Adiante, já na balsa rumo a Montevidéu, ela volta a falar com a mulher. “Aí escrevi o e-mail que você encontrou mais tarde: ‘Guerra, estou a caminho.’”
Esse tom confessional, dirigido à mulher como numa carta, pontua o romance, mas está longe de ser seu único recurso. Em boa parte, ele existe para expressar, também de imediato, uma culpa que antecipa o que virá, mas também o que já passou: as expectativas compartilhadas e frustradas. É a partir dessa fundação que A Uruguaia construirá a odisseia interior de Lucas Pereyra, em que o antes e o depois se cruzam e se completam.
O truque, aqui, não é apenas não ter faltado à aula de fluxo de consciência. Trata-se de levar a cabo o máximo de possibilidades narrativas em um curto espaço de tempo, sem perder as referências particulares de uma história que se dá nas duas margens do rio da Prata, entre as possibilidades de vida que se perderam em algum ponto do passado e, muitas vezes imaturamente, se esperava para aquele futuro sem surpresas.
TEMPO, TEMPO, TEMPO
Essa espécie de temporalidade total, mas sem pompa, é responsável por muitos dos melhores momentos do livro. Como quando, mal acomodado no ônibus a caminho de Montevidéu, Lucas expressa uma momentânea felicidade mesclando as paisagens uruguaias que vê com a memória de um episódio decisivo: o dia em que conheceu “guerra”, que — a essa altura já sabemos — refere-se a Magalí GuerraZabala. A tal uruguaia.
“Não era exatamente o mar o que se adivinhava por trás daqueles campos ondulados, ainda era o rio, o fim do estuário que ia virando mar, mas dava para senti-lo como uma coisa que estava para acontecer, uma reverberação em minha cabeça, onde também estava Guerra, nesse outro fulgor entre as dunas no verão em que a conheci, em Rocha. Naquela direção do horizonte transcorria toda essa lembrança, e agora ela estava cada vez mais próxima.”
Tinha sido em Valizas, cidade uruguaia perto do Cabo Polonio, que fazia as vezes de sede de um estival literário para o qual ele tinha sido convidado no último verão. “O ciclo de leituras e mesas-redondas foi uma grande ocasião para conhecer pessoas, caminhar pelas dunas, fumar, ouvir opiniões, teorias disparatadas, rir, entrar no mar, atualizar as fofocas do mundinho literário”. Quem já foi à Flip, em Paraty, sabe do que se trata. “Ali estávamos nós, os intelectuais latino-americanos apresentando nosso número, falando para nós mesmos num balneário”.
Lucas não dialoga só com Catalina, mas também e principalmente com o “coro grego” que sempre o acompanha. “Meu monólogo mental, minha tribuna adversária.” Capturando diálogos aleatórios pelo caminho, alimentando inseguranças e fantasias, remoendo frustrações e montando teorias intelectuais corriqueiras. E a culpa, sempre por perto nessa música de câmara cheia de dissonâncias. “O apaixonado é como o paranoico, imagina que tudo está falando com ele.”
Vez ou outra, Mairal nos desorienta, com Lucas falando de algum momento no futuro. Ao ganhar um panfleto de uma loja de tattoo em Montevidéu, sua imaginação incendeia com o piercing que Guerra tinha no clitóris. “Guardei o panfleto no bolso da jaqueta. Se tivesse jogado na lixeira em vez de guardar, talvez não tivesse acontecido o que aconteceu.” Afinal, pra que alimentar uma falsa expectativa no leitor, não é mesmo, Catalina?
LUZ DE PÁTIO
Para Lucas, Montevidéu é quase uma antípoda de Buenos Aires em seu “mapa mental e emocional”, com seu jeito imune à selvageria capitalista. A mesma barbárie, aliás, que o fez atravessar o rio a fim de “contrabandear seu próprio dinheiro” para um país que lhe tiraria mais da metade dos US$ 15 mil via sistema financeiro; um país cuja crise cambial é tão persistente que, aparentemente, só o que resta é dançar um tango.
Não na capital uruguaia com seus toldos velhos, o marzipã das vitrines, os liceus, as ramblas, o trânsito civilizado, Pepe e maconha liberada. E as calles com luz de patio, verso que Lucas resgata de um poema em que Jorge Luis Borges tentava capturar a atmosfera da cidade (a propósito, quem recriou exemplarmente essa luminosidade foi Raul Poças, na fotografia do filme Severina, de Felipe Hirsch).
E há Ramírez, a praia em que tudo acontece. Até um estranho fenômeno no céu. Até planos de fugir para o Brasil. Até o que se anunciava o tempo todo. Mesmo assim, a percepção que se tem é de que nada é o que aparenta — ou nada que aparentava no começo, nada que parecerá ser no fim. Se Lucas na verdade nunca soube muito bem o que pensar de tudo, o leitor se vê na mesma situação. Mesmo sem muitos mistérios.
Diante do rio da Prata, ele se pergunta: por que chamam isso de rio, se é mar? “É uma mistura”, explica Guerra. “Aqui há dias em que água está mais verde, mais azul por causa da água salgada, e há dias em que a água é meio marrom.” Nem sempre com as águas cintilantes que ele havia observado antes que o dia inteiro tivesse se passado; antes que, no fim de tudo, ele experimentasse — surpresa! — uma dura forma de libertação.
Bravo!, outubro de 2018
© Almir de Freitas