Numa era em que opinião e informação qualificadas viraram commodities de pouco valor, a mediação cultural entre críticos e leitores parece condenada – consequência de uma liberdade que muitas vezes é apenas ilusória
É uma mitologia meio arruinada pelos clichês, mas não há quem dela não tenha uma imagem familiar: aspirante a escritor termina o primeiro livro e envia pelo correio os originais para as editoras, que respondem com reiteradas negativas. Publicado finalmente, ex-aspirante a escritor aspira agora que os editores dos cadernos culturais dos principais jornais publiquem críticas positivas. De preferência, assinada por um medalhão. Quem sabe um acadêmico. Uma notinha apressada naquela revista semanal também é que bem-vinda, porque ninguém é de ferro e a vida é dura.
Correios, jornais, revistas, originais: a poeira que recobre palavras como estas sugere que o aspira de hoje é muito mais livre e independente que seus antecessores mitológicos. Como o francês Marcel Proust, que teve o Em Busca do Tempo Perdidoserialmente rejeitado pelos editores; ou o americano Hermann Melville, avacalhado pela crítica quando lançou seu Moby Dick.
Hoje, quem quiser pode publicar seu próprio livro, digitalmente – em serviços como os da Amazon – ou mesmo em edições impressas; pode divulgá-lo por conta própria em plataformas dedicadas ou ativando seu networking próprio nas redes sociais; pode até mesmo abdicar das tais críticas positivas, à medida que o boca-a-boca virtual é capaz de, pela quantidade de likes e retuítes, construir alguma reputação (mas a notinha na revista ainda vale).
Mas liberdade, como já sabemos, não é conceito absoluto que independa dos desvãos da semântica e das ranhuras da vida real. Frequentemente, tem preço; às vezes, não passa de ilusão. Se a prática dispensa a sequência de chancelas “institucionais” do mercado editorial, por assim dizer, é preciso avaliar o custo pelo o que se está abrindo mão, para ter claro sobre que tipo de liberdade se está falando.
RUMO À ENTROPIA
Comecemos pelo fim. A ideia da crítica literária mergulhada na crise não é nova, e antecede em muito as novas tecnologias. Deriva, mais profundamente, da “perda da centralidade” da literatura, como observa o professor da Unicamp e crítico Alcir Pécora em entrevista publicada nesta edição. À parte isso, não é de desprezar a aceleração rumo à entropia causada por uma era em que informação e opinião se transformaram em commodities de pouco valor, disseminadas na velocidade de uma banda larga.
Jornalista e crítico literário, Manuel da Costa Pinto observa como esse fenômeno está ligado ao declínio da própria imprensa tradicional – e isso apesar de ela vir ganhando algum fôlego com a choque de realidade que as fake news deram nas ilusões democráticas das redes; da perda de prestígio do intelectual; e do desinteresse em torno das próprias teorias estéticas. “A internet colocou em xeque a dinâmica consagrada da mediação cultural”, diz. “O lado bom é que autores e, por tabela, leitores não ficam mais submetidos àquilo que está instituído, dando espaço para novas manifestações ou obras muitas vezes ignoradas pela mídia tradicional.”
Mas o “salto dialético” da quantidade em direção à qualidade não nasce do Espírito Santo. “Colocando na balança, acho que o fim das instâncias de mediação é extremamente prejudicial a uma visão forte, comparativa, da produção literária, pois elimina uma reflexão sobre o lugar ocupado por uma nova obra dentro da história e do cenário contemporâneo”, completa Manuel.
Para o escritor e crítico José Castello, a crise recente estourou na própria mediação – uma crise de fundo “moral e intelectual”, gestada já na pasteurização da mídia tradicional. “O pluralismo acabou – e não existe pensamento crítico sem pluralismo. Logo: o pensamento crítico também está morrendo, tudo o que temos é um cenário dominado pela repetição das mesmas ideias. Sem pluralismo, sem coragem intelectual, sem diversidade, não há crítica. Há apenas propaganda, marketing, discursos vazios e iguais.”
Sobre a internet, nada de santo ou espírito por aqui também: “Não tenho nervos nem paciência para suportar a gritaria que domina o Facebook. Os sites e blogs também estão, no geral, e afora exceções honrosas e corajosas, dominados pelo ódio, pelo imediatismo e – apesar de tantas palavras e palavras – dominados pela ausência de pensamento.” A ideia de uma democratização da mídia passa longe. “É só expansão de mercado”.
DIZER E CHEGAR
O pessimismo de Castello conduz a novas frentes. Se a libertação do escritor da autoridade do crítico é um toldo colorido erguido à frente da pauperização do pensamento, restam a força do marketing e da divulgação. Que não precisam mais, em teoria, depender apenas da mão-de-obra especializada de uma editora. “Hoje a sessão de autógrafos não é mais decisiva para o sucesso de um livro”, afirma o poeta Fabrício Carpinejar, um dos escritores brasileiros mais influentes nas redes sociais – no Twitter são cerca de 850 mil seguidores, mais ou menos o mesmo no Facebook.
“A web inspira seguidores a adquirir não apenas um livro de quem gosta, mas toda a sua obra”. Trata-se, acredita, de um “culto à personalidade”, que se sobrepõe aos títulos em si. Só que, além do marketing, outra etapa fundamental do processo é a distribuição – e, no frigir das páginas, a independência total não passa de miragem. “É fácil publicar, mas chegar às livrarias é uma batalha inclemente. O escritor ainda depende da reposição e de uma forte distribuição para ter chance de sobreviver nas primeiras semanas de lançamento”, diz Carpinejar.
É uma constatação que não causa estranheza para quem desconfia do real alcance da “democracia” da Internet: a dos blogs que ninguém lê porque fora do radar do Google (exceto se pagos) e a das bolhas que encerram os posts de Facebook (exceto se pagos). Tirando os megassucessos midiáticos que pouco ou nada têm a ver com a literatura (ninguém vai colocar nessa conta o livro de um Felipe Neto da vida), a vida dura de achar uma boa exposição (exceto se paga…) na livraria ainda conta muito na soma final.
Por falar em YouTube, uma novidade relativa nessa equação são os booktubers, uma moçada que tenta conciliar o gosto pela leitura com a hiperconexão do mundo. São uma gota no oceano da web no Brasil, mas nos dedos nem são poucos: Perdido nos Livros, Vamos Ler, All About That Book, Kabook TV, Literature-se, Tiny Little Things, Ler Antes de Morrer… Alguns estão umbilicalmente ligados a literatura best-seller adolescente, outros exploram – muito legitimamente – a demanda dos vestibulares. Mas há também quem fale de lançamentos e de clássicos.
O canal Ler Antes de Morrer, por exemplo, tem vultosos 180 mil inscritos – número mais que suficiente para que o mercado editorial, tão acostumado a valores modestos, não ignore essa plataforma. “Tenho parcerias com livrarias como Amazon e Saraiva, e negocio também com editoras comerciais e autores independentes a divulgação de lançamentos através de vídeos publieditoriais”, diz a jornalista Isabella Lubrano, que criou o canal em 2014, como uma forma – temporária na época – de fazer reportagem na frente das câmeras, seu sonho de carreira. Acabou achando uma melhor.
Entre os inscritos no canal, um público variado. “Alguns são leitores experientes, mas a maioria está começando agora a se interessar por literatura. O que une todos é a dificuldade de encontrar pessoas com quem conversar sobre este assunto. Assim, fico com a impressão de que meu canal acaba funcionando como ponto de encontro para este pessoal trocar ideias e receber boas sugestões de livros para ler”, diz ela.
PUBLIQUE-SE
Se a divulgação conta com novas ferramentas, mas não abre mão de procedimentos mais tradicionais em razão do alcance limitado dessas ferramentas, o mesmo pode ser dito em relação à etapa 1 da nossa mitologia – a possibilidade de um novo Proust assumir o papel de franco-atirador já na hora de publicar sua magnum opus. E com alguns detalhes reveladores a mais.
Em um estudo de 2016, a editora da Embrapa Juliana Meireles Fortaleza entrevistou 81 autores independentes, que recorreram, no todo ou em parte, às ferramentas de autopublicação. Dos entrevistados, 80% não alcançaram a meta de vendas, e nada menos que 100% afirmou que a principal falha foi (CQD) a falta de investimentos em marketing e divulgação. Poucos foram os que desembolsaram algo: 26,67% contrataram um designer para fazer a capa; 22,22%, revisor de texto; 13,33%, diagramador; 6,67%, o serviço de normatização bibliográfica. Isto é: em 62,22% dos casos, o texto que saiu do Word foi o que chegou ao leitor.
A estatística nos joga, novamente, para a questão da qualidade, cuja falta nenhum marketing – nem institucional, nem pessoal – pode corrigir. “Um livro de qualidade é aquele em que o conteúdo é transmitido adequadamente ao leitor e, para que isso ocorra, é necessário que o conteúdo esteja bem estruturado e organizado, o texto seja preparado e revisado e que o projeto gráfico seja desenvolvido para que se tenha uma leitura agradável”, escreve Juliana.
Deriva daí, em boa parte, a ideia de que um livro autopublicado é no fundo amador – e não é só preconceito. “A ausência de um editor dedicado, com olhar crítico e transversal, faz falta”, diz Paulo Tedesco, escritor e consultor em projetos editorias. “Até grandes escritores, como Hemingway, por exemplo, precisaram de um editor e amigos para arrumar seus livros e definir seus títulos. Aí cai a ficha de que, sem editor, sem um profissional, as chances com uma publicação são mínimas, quase nulas.”
Nesse particular, ao menos, existem alternativas. A Ímã Editorial, por exemplo, conta com a plataforma MOTOR, em que o aspira leva não apenas seu manuscrito, mas também seu potencial de leitores, que entram no financiamento por meio de crowdfunding. “Aproveitamos o feedback dos leitores para aprumar questões de textos e de design, mas o processo todo, da revisão ao design ao marketing, é tocado por profissionais experientes da edição”, diz Julio Silveira, diretor da Ímã. “O objetivo não é fazer um livro, é lançar um livro, de forma competitiva com o que as editoras ‘tradicionais’ lançam em termos de prosa adulta brasileira”.
ALMOÇO A PAGAR
Liberdade é bom, mas é de fato estranho que muitas vezes ela pareça ser também fruto do Espírito Santo – uma ilusão, aliás, que a cultura de “gratuidade” da internet ajudou a impulsionar. De tal forma que distraídos de todas as cepas acreditem que profissionais de design, marketing, diagramação e edição sejam dispensáveis. Se não isso, que podem ser pagos com alguns tostões. E então voltamos aos críticos, que oferecem eles também um trabalho especializado, ao colocar a formação de uma vida a serviço dos leitores. Não só opiniões aleatórias jogadas em um textão do Facebook.
Mas dá pra remar contra essa maré? Baseado em sua própria experiência, Carpinejar não tem muitas dúvidas de que o processo de extinção do crítico profissional é irreversível. “Sinto saudade dos críticos dos jornais, puros, que não são também escritores. Como Wilson Martins. O que há atualmente é o leitor emocional, anônimo, os críticos de aplicativos, o contumaz achismo de uma a cinco estrelas na avaliação das plataformas. O que impulsiona o livro é o boca-a-boca e a sua visibilidade nas redes de consumo, não mais a resenha literária”.
Castello não se anima. “O crítico profissional praticamente já acabou. Ainda existem pequenos refúgios, como o Rascunho e o Suplemento Pernambuco, só para citar duas publicações com que colaboro. Parece que não é só a crítica que perdeu o pensamento crítico, a própria literatura se encolheu, passou a valorizar o banal e o digestivo, o ligeiro e o fácil”.
Na sua avaliação, Manuel da Costa Pinto destaca o dinamismo desse cenário, em que a claque ainda convive com a credibilidade da crítica. Que já não é, de qualquer forma, a mesma diante da ideia de que obra de arte não deve ser avaliada apenas pela sua realização estética, mas também por valores de outra natureza – como as das reivindicações das obras identitárias, por exemplo, ou mercadológicas. “Acho que a crítica literária ficará restrita a um determinado circuito, de modo semelhante ao que acontece com a crítica de música erudita ou dos gêneros musicais que preservam a ideia de invenção. Arte minoritária, crítica minoritária”, diz. “O resto é fascismo travestido de agenda identitária ou realpolitik de mercado.”
Nada, contudo, que abale a disposição de Isabella Lubrano, uma youtuber que, segundo ela mesma diz, tem pouca paciência com Facebook, Twitter e outras redes sociais e muito apego pela mídia tradicional. “Sou uma leitora voraz da revista Quatro Cinco Um, e também adoro os artigos da revista piauí sobre literatura. Considero o trabalho dos críticos literários importantíssimo, e procuro tê-los como guias. Acho que falamos com públicos diferentes, que se complementam. Na minha opinião, quanto mais gente estiver falando sobre livros, melhor.”
No varejo, eis uma quantidade que realmente faz a diferença. A tendência para o futuro, contudo, não chega a ser auspiciosa. Livros, editores, críticos: um dia, quem sabe, essas palavras também estarão sob camadas de poeira, pertencentes a uma mitologia já sem sentido. Teremos algo, isso é certo. Tão certo quanto o fato de que, não importa o que seja, dificilmente teremos a sensação de liberdade que um dia acreditamos ter.
Bravo!, maio de 2018
© Almir de Freitas