Autor do premiado ‘A Resistência’, Julián Fuks defende uma ‘literatura ocupada’ por questões políticas no sentido amplo, aberta ao mundo e a outras vozes
Julián Fuks ganhou lugar definitivo na novíssima geração da literatura brasileira com o romance A Resistência (2015), marcando presença na principais prêmios de língua portuguesa – levou o Jabuti e o José Saramago, ficou em segundo no Oceanos e foi finalista do São Paulo. Mesclando ficção e biografia, Fuks revisita as origens dos pais na Argentina, naqueles tempos em que as ditaduras militares assolavam a América Latina, projetando-as nos destinos da família. Como que evocando o título do livro, o escritor paulista fala de uma “literatura ocupada”, que escape da indiferença em tempos sombrios. “Não se trata de uma literatura usurpada ou depauperada”, diz, “e sim de uma literatura forte e contundente carregada da pertinência dos dramas presentes”. Leia a seguir a entrevista concedida à Bravo!
Tomando emprestadas as ideias de resistência que perpassam seu romance, escrever também é resistir?
O que mais me atrai na ideia de resistência, no ato de resistir, é sua ambivalência, sua complexidade. A mesma palavra pode descrever dois movimentos opostos: resistir em sentido negativo, fugir de algo, recusar-se a ver, a encarar, a dizer; e pode ser o seu contrário, o reverso da fuga e da fraqueza, o ato de força que nos põe em movimento. A escrita, para mim, é atravessada por esses dois momentos. Passo longo tempo em silêncio, infenso a qualquer produção criativa, entregue a um torpor doméstico, incapaz de encontrar as palavras certas, incapaz de expressar qualquer coisa pertinente. Escrever é então romper com essa mudez, com esse torpor, com esse vazio. Escrever é então resistir ao silêncio num gesto assertivo, é romper com as palavras de sempre, com as certezas cotidianas, e me ver em confronto com o mundo, com as verdades que me cercam, com as minhas próprias ideias.
Pode explicar (novamente) a ideia de “literatura ocupada”?
No momento dramático que temos vivido no Brasil, e não só aqui, no brutal retrocesso que temos sofrido em tantos campos, na espoliação de tantos direitos sociais e políticos, nessa autoimplosão de um país que em mínima medida buscava uma justiça, e agora nem sabe o que buscar, nesse momento dramático é difícil que a literatura permaneça indiferente, se feche em suas questões corriqueiras. Nesse contexto, vejo relevância numa literatura que se deixa ocupar por questões urgentes, pela política em seu sentido mais amplo. Ocupar tem sido o gesto máximo de resistência nestes tempos: ocupar ruas, ocupar edifícios públicos, ocupar escolas e universidades. A literatura ocupada pode ser mais um lugar para o exercício dessa luta, e mais eficaz vai ser se conseguir preservar seus preceitos, seus princípios e rigores formais. Não se trata de uma literatura usurpada ou depauperada, e sim de uma literatura forte e contundente carregada da pertinência dos dramas presentes.
Você acredita que os escritores perderam força no debate político, no mundo e especialmente no Brasil?
Essas tendências parecem pendulares, curiosamente. Houve um tempo de escritores posicionados, engajados, Sartre defendendo com toda ênfase uma literatura política, Cortázar se aproximando do sandinismo e se mudando para a Nicarágua. A isso se sucedeu um momento de escritores falando apenas para si mesmos e sobre si mesmos, rodando num circuito de festivais, festas, feiras. Eis que agora, nesse amplo circuito mercadológico feito para que os escritores expusessem suas intimidades e assim vendessem alguns livros, eis que agora os escritores são convocados a se posicionar politicamente, a opinar sobre o inescapável estado das coisas. E assim, por iniciativa própria ou alheia, escritores e escritoras voltam a ganhar força nesse amplo debate político que nos tem dominado a todos.
Quais as principais inovações que você identifica entre os escritores brasileiros contemporâneos?
Difícil acompanhar a multiplicidade desses movimentos: a literatura brasileira está viva e se move, procura sem cessar sua própria relevância, marcada mais pela experimentação do que pela consistência. Está aberta ao mundo também, já não tão obcecada pela busca de uma questionável identidade nacional, por uma noção que englobe a todos, que capture uma única, impossível essência. Aberta ao mundo, tem se tornado mais variada e mais híbrida, tem participado da transformação mais recente do romance: já não tão fiel à sua ficcionalidade, atravessado por discursos que antes externos, a filosofia, o ensaio, a historiografia, o relato autobiográfico. Aberta ao mundo, abre-se também ela própria a outros discursos: vozes há muito silenciadas, vozes de mulheres, de negros e negras, vozes das periferias, têm encontrado guarida também na literatura contemporânea.
A autoficção, mescla de ficção e autobiografia, que marca A Resistência, tem sido vista em outras obras recentes. É essa uma das principais tendências da literatura brasileira?
Essa tem sido uma das principais tendências por toda parte, não só no Brasil, o romance a romper aquilo que tinha permanecido quase intacto durante sua longa crise: a possibilidade de ficcionalizar, de fantasiar um outro. Agora parece que desvanecem as mediações e o escritor já não inventa um narrador que inventa um personagem para falar, finalmente, do outro ou de si. Agora o escritor pode falar diretamente por si, parece que ouvimos sua voz, e a sinceridade se faz o cerne de tantas escritas, marca da autenticidade de tantas obras contemporâneas. Transforma-se nesse processo também o ato da leitura: rompe-se o pacto ficcional mais estrito, instaura-se o pacto ambíguo, em que o leitor já não sabe se é verdade ou não o que leu, e já não finge que isso não lhe interessa.
José Paulo Paes dizia, muito anos atrás, que um dos problemas do Brasil era a falta de uma literatura de entretenimento. Você concorda?
Mário de Andrade dizia, ou o seu narrador, que um dos problemas do Brasil é o excesso de saúvas. São muitos os problemas a serem identificados no país, e difícil defender que tenha grande importância, em meio a essa infinidade, a falta de uma literatura de entretenimento. Mas, sim, nem por isso deixaria de ser interessante que algo assim se desenvolvesse. Que um público mais vasto voltasse a descobrir que autores brasileiros são capazes de divertir e agradar, são capazes de entreter.
Qual é, na sua avaliação, o futuro da literatura no Brasil? Dá pra ter algum otimismo?
O futuro da literatura me preocupa muito menos do que outros futuros no cenário brasileiro. A literatura já mostrou muito poder de proliferar em meio à penúria e ao despautério, e há de encontrar sua sobrevivência, como sempre encontrou, nas circunstâncias mais adversas. Ainda assim, penso que é preciso contornar esses termos tão negativos e encontrar outra forma de falar de literatura, outra forma de falar de política. A política desprovida de um mínimo grau de otimismo pode ser desastrosa: não se pode perder de vista ao menos algo das possibilidades utópicas, libertárias, emancipatórias. E é possível que o mesmo pensamento valha para a literatura.
E em comparação com a Argentina. Estamos muito atrás?
As literaturas brasileira e argentina têm tradições muito distintas, quase opostas: uma voltada para as grandes questões nacionais, como antes dito; outra mais versada no jogo metaficcional, nas reflexões formais, na escrita como artifício do pensar. Ambas parecem hoje estar se afastando um pouco desses caminhos anteriores, tornando-se mais cosmopolitas também, menos ligadas às suas práticas tradicionais. E, assim, talvez porque vivam essas vastas transformações, não têm encontrado facilmente grandes nomes, não têm chegado a consensos absolutos, não têm criado com facilidade os seus cânones – o que pode não lhes fazer nenhum mal.
Bravo!, março de 2018
© Almir de Freitas