A verdade do espelho

Da lenda de Narciso aos pesadelos de Borges, os espelhos fascinam e causam horror – entre as razões, porque eles nunca mentem

“Os livros talvez não sejam necessários: a princípio bastavam os mitos; poderiam encerrar toda uma religião”, escreveu André Gide na abertura do pequeno O Tratado de Narciso(1891), em que fazia uma leitura da história daquele rapaz grego apaixonado pela própria imagem. Em torno desse mesmo tema, e de maneira semelhante, é possível dizer também que existem sabedorias e temores que nos contemplam a todos, sejamos ilustrados, lidos, ou não. Tem a ver com os mitos – ou, dizendo de outra maneira, com o nosso inconsciente, modelado por um aprendizado ao longo das gerações.

Espelhos desde sempre nos fascinam, uma sensação que carrega também a ideia – bastante familiar e prosaica para nós – de que esse objeto que nos devolve nossa própria imagem pode ser também um inimigo. Ou, no mínimo um chato que insiste em mostrar nossas imperfeições: aquelas olheiras com que nos deparamos de manhã, aquela calvície que se pronuncia, aquela ruga na testa que não estava lá. Nesse mundo prosaico vivido em nossos banheiros de manhã, é o oposto da balança, sempre difamada – errada, quebrada, desregulada, mentirosa.

O espelho, não: ele não deixa margem de dúvida. Como a rainha má de Branca de Neve e os Sete Anões, nós sabemos que ele não mente. Voltando ao começo deste texto e de toda essa história: Narciso enganou-se quando achou que sua imagem refletida nas águas cristalinas da fonte Téspias era de outra pessoa. Mas o erro não foi provocado por uma ilusão: foi a verdadeira imagem da sua beleza que fez com que ele, perdidamente apaixonado, definhasse até a morte na beira da água.

Alguém pode objetar que não é bem assim: que os espelhos, ao contrário, invertem a realidade, trocando, por exemplo, mãos direitas por esquerdas, fazendo noivos de alianças virarem casados, e vice-versa – coisa que pode se muito séria a depender do contexto. No entanto, em um ensaio de semiótica notável, Sobre os Espelhos, o filósofo italiano Umberto Eco demonstra com como isso não passa de um erro, ainda que persistente.

“O espelho reflete a direita exatamente onde está a direita, e a esquerda exatamente onde está a esquerda”, ele escreve. “É o observador ingênuo que, por identificação, imagina ser o homem dentro do espelho. “ Podemos não ser tolos como Narciso, que confunde a si mesmo com um outro, mas não estamos livres de enganos: a simetria inversa que percebemos é uma antiga ilusão, em que mundo real e virtual se confundem. Ressalte-se: imaginamo-nos dentro do espelho, coisa que não existe. Entramos, por assim dizer, nele. Como Alice, rumo ao país das maravilhas.

Fora do mundo fantástico, resta a sinceridade do espelho, que “nem mesmo se preocupa em reverter a imagem como faz uma fotografia, que quer dar-nos uma ilusão de realidade”, observa Eco. Nem falemos aqui das selfies no Instagram e suas muitas mentirinhas. “O espelho registra aquilo que o atinge da forma como o atinge. Ele diz a verdade de modo desumano, como bem sabe quem – diante do espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a própria juventude”.

É essa mesma verdade que sustenta uma miríade de mitologias sobre espelhos em várias culturas ao longo da história, dotados quase sempre de poderes divinatórios, capazes de relevar passado e o futuro. Ou, ainda, os segredos mais recônditos de nossa alma, o que vai em nosso coração – coisas que (pense bem) não gostaríamos que viessem, literalmente, à luz.

OUTRO EU

Talvez a soma de todas essas questões explique, pelo menos em parte, a mescla de atração e temor que os espelhos acompanham a humanidade: uma verdade terrível prestes a ser revelada, independentemente da nossa vontade. Que não é apenas a que diz respeito a nossa aparência física, cujo reflexo a física explica tranquilamente. Há temores mais antigos em jogo, e têm muito a ver com esse “outro eu” que nos encara do “lado de lá”.

De todos os escritores, nenhum explorou tão extensivamente esses medos quanto Jorge Luis Borges. Mas há um detalhe físico fundamental aí: portador de uma doença hereditária, o argentino foi perdendo a visão ao longo de toda a vida adulta, até ficar quase que completamente cego, por volta dos 60 anos. Daí em diante, os espelhos, que desde sempre tinham sido uma das suas obsessões, passaram a ser também um campo de memória e imaginação.

Na sua poesia, os versos sobre o tema se multiplicam como imagens de espelhos intercambiados. Em Um Cego: “não sei qual é o rosto que me mira / Quando miro o rosto no espelho; / Não sei que velho espreita em seu reflexo / Com silenciosa e cansada ira. (…)”. Em O Espelho: “(…) Agora temo que o espelho encerre / O verdadeiro rosto de minha alma, / Lastimada de sombras e de culpas, / O que Deus vê e talvez vejam os homens.”. Em Os Espelhos: “O vidro nos espreita. Se entre as quatro paredes do quarto/ existe um espelho, / já não estou sozinho. Há outro. (…)”. Em Ao Espelho: “És o outro eu sobre o qual fala o grego/ E desde sempre espreitas. Na brunidura/ Da água incerta ou do cristal que dura/ Me buscas e é inútil estar cego. / O fato de não te ver e saber-te/ Te agrega horror (…)”.

Na conferência O Pesadelo, publicada no livro Borges Oral & Sete Noites, ele conta que seus pesadelos recorrentes incluíam labirintos, máscaras e… espelhos. Elementos que podiam, inclusive, convergir para um mesmo sonho. “Bastam dois espelhos opostos para criar um labirinto”, lembra. Em outro trecho, vai ao ponto: “Às vezes me vejo refletido num espelho, mas me vejo refletido usando uma máscara. Tenho medo de arrancar a máscara porque tenho medo de ver meu verdadeiro rosto, que imagino atroz.”.

Verdade, sempre a verdade. Seguindo a trilha das mitologias, vale lembrar que os cegos muitas vezes foram tidos como capazes de enxergar o que ninguém mais podia – entre eles os adivinhos que, como os espelhos mágicos mencionados, podiam revelar o futuro. Entre eles está o vidente Tirésias – que (amarrando várias pontas do que se falou até aqui) bem avisou a mãe de Narciso que ele nunca deveria ver a própria imagem.

INIMIGO, INIMIGO MEU

Claro está que, apesar de hoje compreendermos razoavelmente as leis da catóptrica (depois de consultarmos o significado dessa palavra no Google), não nos livramos totalmente do mundo fantástico.

A respeito disso, é o mesmo Borges quem nos conduz por outro mito. Em Livro dos Seres Imaginários, fala de uma suposta lenda do povo do Cantão – suposta porque, é preciso dizer, o argentino se divertia com o jogo de criar histórias ficcionais dando-lhes a aparência de verdade. Certamente, discordava de Gide sobre a não necessidade dos livros: medos como os dos cantoneses podiam bem vocalizar seus próprios medos, que, por sua vez, podiam dar forma literária a mudas mitologias:

“[Na lendária época do Imperador Amarelo], o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, aliás, muito diferentes; nem os seres, nem as cores, nem as formas coincidiam. Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz, entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, as pessoas do espelho invadiram a Terra. A sua força era grande, mas ao fim de batalhas sangrentas prevaleceram as artes mágicas do Imperador Amarelo. Este repeliu os invasores, aprisionou-os nos espelhos e impôs-lhes a tarefa de repetirem, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os da sua força e da sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, porém, sacudirão esse torpor mágico. (…) Gradualmente divergirão de nós, gradualmente não nos imitarão. Partirão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas.”

Se falamos em mitologia, fatalmente voltamos à psicanálise. A mesma disciplina que cunhou o termo narcisismo tem outra palavra para esse medo atávico de espelhos: eisoptrofobia. Um distúrbio que inclui o medo de os espelhos serem uma porta para o sobrenatural – para o desconhecido. Ou de ver a própria imagem adquirir uma autonomia hostil – um truque muito frequente nos filmes de terror.

Sob outras formas, a literatura também se fartou com a ideia de uma cópia invertida nossa – um duplo maligno, capaz de revelar nosso lado mais obscuro, a terrível verdade sobre esse “outro eu” que nosso ego oculta. Pode ser um gêmeo, um clone, um sósia. Uma imagem nossa: algo que nos é profundamente familiar e, ao mesmo tempo, estranho – unheimliche, no idioma original de Freud.

Alemã também é a palavra doppelgänger, que os românticos do século 18 criaram para designar esse ser que nos ameaça com a verdade sobre nós mesmos. É o William Wilson de Edgar Allan Poe, o Mr. Hide de Stevenson, o Dorian Grey de Oscar Wilde, o Horla de Maupassant, o Sombra de Andersen, o Golyádkin de Dostoievski – e tantos outros, espalhados em obras de Marcel Schwob, Machado de Assis, Hoffmann, Saramago…

Em todos, uma verdade terrível, uma feiura de nossa alma que nos espreita – símbolo daquela com que eventualmente nos confrontamos na tal manhã solitária no banheiro. Olheiras, calvície, ruga. Naquele momento em que, mais do que nossa aparência, somos informados sobre a nossa verdadeira natureza.

Bravo!, dezembro de 2017
© Almir de Freitas