O tempo do agora

Entre a sensação de impotência diante do passado e a incerteza em relação ao futuro, o contemporâneo se desenha como uma era marcada pelo risco, pela insegurança e pelo provisório, na sociedade e na arte

Em um texto que se tornou famoso, o filósofo alemão Walter Benjamin fez uma interpretação muito pessoal de Angelus Novus (1920), quadro expressionista de Paul Klee. Tratava-se, segundo escreveu em uma de suas Teses Sobre a Filosofia da História (1940), do “anjo da história”: asas abertas, esse anjo caído não pode parar, impulsionado em direção ao futuro por uma tempestade que sopra do paraíso; rosto eternamente voltado para o passado, ele assiste com seus “olhos encarquilhados” às ruínas que se acumulam até o céu, resultado de uma única e imensa catástrofe humana. “Essa tempestade”, assinalou, “é o que denominamos o progresso”.

Não demoraria muito para que Walter Benjamin, judeu, fizesse ele também parte da catástrofe, tão costumeira no século 20. Acredita-se que, em 26 de setembro de 1940, ele tenha cometido suicídio depois de ser impedido de atravessar a fronteira da Espanha, rumo aos Estados Unidos, fugindo da França ocupada pelos nazistas. Se não predizia seu futuro imediato quando escreveu o texto, Benjamin tinha claras diante de si, muito próximas, as ruínas da sua – nossa – civilização, aceleradas então pela Segunda Guerra Mundial e pelo nazismo – um horror que preenchia todo o seu presente.

Daí que esse anjo novo de Klee-Benjamin possa ser tomado também como emblema de um presente persistente – esse “tempo histórico coletivo” que chamamos costumeira, e às vezes imprecisamente, de “contemporâneo”. Um tempo difuso espremido entre a sensação de impotência diante do passado e a incerteza em relação ao futuro, feito de marcos de difícil apreensão. Para o próprio Benjamin, a história era o “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.”

Mas o que é o contemporâneo? Quem nos ajuda a desenhar uma resposta é o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor de outro texto famosinho, cujo título, muito a calhar, é O Que É o Contemporâneo? (2006). Recorrendo a uma anotação de Roland Barthes, que por sua vez se utilizou de uma formulação de Friedrich Nietzsche, Agamben afirma de início que “o contemporâneo é o intempestivo” – o que equivale a dizer que ele não deve ser pensado apenas em conexão com o tempo presente. Muito ao contrário:

A contemporaneidade (…) é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias (…) Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

O aparente paradoxo, segundo essa concepção, é a de que é preciso enxergar além de seu tempo – de olho no passado, no arcaico – para compreender o presente. Não apenas isso:

“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber nele não as luzes, mas o escuro. (…) Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. (…) É como se aquela invisível luz, que é escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.”

O contemporâneo seria, digamos, algo como uma Medusa: é possível encará-lo, mas com certo método. Quem é bem-sucedido nessa missão está apto a “transformar e colocar o presente em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história.” Se é assim é, supõe-se que haveria outros modos de aquele anjo ler com mais clareza o cenário das ruínas a seus pés. E, mais importante, compreender sua condição presente.

BOLA NAS COSTAS, CAPITAL

E talvez a mesma compreensão anacrônica do contemporâneo, que “coloca em ação uma relação especial entre os tempos”, nos possibilite não apenas ler a história de uma maneira inédita; talvez – e tomando muitas liberdades – a escuridão do presente possa nos dizer das trevas que envolvem o futuro às nossas costas. E vice-versa: certamente é possível vislumbrar nas predições do futuro um pouco do nosso tempo, nesse todo contemporâneo heterogêneo que nos define.

Nem sempre o que se vê é coisa boa. Com frequência, aliás. “Para alguns o contemporâneo será uma época de perdedores e de perdas radicais, uma época do triunfo do capitalismo mais perverso e de desdemocratização acelerada”, diz a escritora e professora da Unirio Laura Erber. Fato é que, desde que os eventos do século 20 aceleram a perda da fé no tal progresso, as ciências humanas escrevem uma história em que não faltam ruínas vindouras.

Na escola marxista, elas são abundantes. Em A Nova Razão do Mundo (2009), por exemplo, os sociólogos franceses Pierre Dardot e Christian Laval defendem a ideia de que o neoliberalismo obteve êxito em impor seus valores à própria alma do indivíduo, em transformar a economia numa disciplina pessoal – um mundo em que o homem “se governa” da mesma maneira com que é “governado”. Nessa racionalidade, o protagonista é o “sujeito empresarial”:

O que está em jogo (…) é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de ‘subjetivação contábil e financeira’, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à relação do capital com ele mesmo ou, mais precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo como um ‘capital humano’ que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais.”

Como em um episódio de Black Mirrormesclado com O Capital, esse “neossujeito” – nós – abraça a concorrência, a competição, o desempenho e a austeridade como valores individuais, de vida. Para os autores, a consequência disso é o desaparecimento dos limites entre a esfera privada e a pública, corroendo os próprios fundamentos da democracia liberal. O futuro, nessa perspectiva, é o da “pós-democracia”.

De olho na economia, o sociólogo alemão Wolfgang Streeck enxerga outro futuro possível. No lugar da vitalidade ameaçadora apresentada por Dardot e Laval, Streeck vê fragilidade. Em Como vai Acabar o Capitalismo? (2016), arrisca que estamos assistindo ao fim do sistema – sem que exista necessariamente uma alternativa viável no horizonte.

Queda do crescimento, da igualdade social e da estabilidade financeira são as “três tendências destrutivas” por ele detectadas.

“Nesse processo, as partes do todo vão se encaixar cada vez menos; atritos de todo tipo vão se propagar; consequências inesperadas vão se disseminar, por razões cada vez mais difíceis de serem determinadas. Incertezas vão proliferar; crises de todo tipo – de legitimidade, de produtividade ou ambas – vão se suceder, enquanto diminuirão ainda mais a previsibilidade e a governabilidade (como vem acontecendo há décadas). Por fim, a miríade de correções provisórias concebidas para gerir crises no curto prazo vai entrar em colapso sob o peso dos desastres diários produzidos por uma ordem social em profunda instabilidade e anomia.”

Fora do território marxista, uma leitura pessimista de outra ordem é a do historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã (2015)O título deriva da teoria de que estamos no limiar de uma transformação sem precedentes: com a fome, a peste e a guerra minimamente controlados, o homo sapiens teria superado os flagelos históricos da humanidade eestaria prestes a ingressar na era do homo deus.

“Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos. No início do século 21, o ser humano médio tem muito mais probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s do que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda.”

Nessa transição, operada por uma tecnologia capaz de processar quantidades gigantescas de dados, a luta pela sobrevivência daria lugar à felicidade, à imortalidade e à divindade. Só isso.

Não há garantia, por óbvio, que essa agenda fantástica seja cumprida algum dia. Mas é recomendável ter cuidado com o que se deseja: Noah Harari argumenta que o declínio do homo sapiens já está sendo marcado pela ascensão de um dataísmo, espécie de nova religião da informação que jogará por terra até o mais corriqueiro dos humanismos. Nela, inteligência se sobreporia à consciência, e os seres humanos não passariam de algoritmos, vivendo vidas (divinas, imortais, que sejam) que não passarão de processadoras de dados.

PROVISÓRIO, SEM CENTRO

Visões pessimistas do futuro não são raras – e isso claramente nos diz algo em relação à maneira como encaramos nosso presente. Se isso é verdade, é preciso perguntar também se não foi assim sempre. Isto é: se nossos antepassados, obviamente contemporâneos a seu tempo, também não sentiam ansiedade em relação ao que viria, às vezes com muito mais razões para temer o futuro do que nós.

Parece certo que sim, mas em que somos diferentes? Um bom lugar para começar a buscar respostas é na produção cultural e, muito especialmente, na arte contemporânea. Nesse campo, assistimos a uma narrativa preenchida, desde o início do século passado, de curtos-circuitos na tradição – na ideia do sacro, do verdadeiro, do belo, do único. Somos tributários da aniquilação, por meio da tecnologia, da “aura” da obra de arte, para usar o termo de – ele de novo – Walter Benjamin, no ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1936):

Na medida em que [a técnica] multiplica a reprodução, [ela] substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade.

Distantes ainda estavam ainda a globalização, a internet, os smartphones –impensável, então, a velocidade atual de propagação das imagens e das informações em um mundo conectado. O diagnóstico de Benjamin há 80 anos se prolonga no nosso tempo, em que – entre a maravilha e o susto – produção, circulação e consumo de arte mudaram radicalmente.

Trata-se de uma era em que provisório se transformou na principal característica da obra de arte, na avaliação de Beatriz Resende, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Poéticas do Contemporâneo (2017).

A condição de provisório, de não permanente, de uma obra de arte que por vezes já é criada para se extinguir, como instalações, performances, obras intencionalmente perecíveis (…) é propriedade que fascina, mas que também incomoda na produção artística chamada contemporânea. (…) Sob um aspecto a maioria dos teóricos e críticos que investigam a arte contemporânea parece estar de acordo: a arte contemporânea é de fato constituída por dúvida, hesitação, incerteza, indecisão e pela necessidade de uma prolongada reflexão em busca de respostas.

Rejeitando em parte as concepções do texto de Agamben, e adotando a leitura mais estética encontrada em um volume homônimo (Qu’est-ce que le Contemporain?) organizado pelo francês Lionel Ruffel, Beatriz traça o perfil de um mundo marcado por “descentramentos”, em que a noção de centro não faz mais sentido. Nesse nosso contemporâneo, são inegáveis a democratização do acesso à cultura, e deve-se a ela a disseminação das manifestações culturais nas periferias das cidades e do mundo. Do outro lado da moeda está o risco de tudo acabar sendo parte de uma rede institucionalizada mundo afora, conectada a um sistema que tudo abarca.​

“A globalização incentivou a financeirização da vida em todos os seus aspectos, e não foi diferente no campo artístico, estético ou criativo”, diz Laura Erber. “Os artistas passaram a ser vistos como meros produtores de conteúdo de luxo ou entertainers, e são eles mesmos ornamentos vendáveis de diversas maneiras. Incentivou também a prática do colecionismo como especulação financeira no sentido estrito e percebeu no contexto artístico um forte aliado para lavagem de dinheiro.”

“Muitos grupos produzem arte, mas ainda existe uma concepção elitista e colonizada legitimando um olhar eurocêntrico e masculino”, aponta, por sua vez, Djamila Ribeiro, filósofa e ativista. “Existem artistas brilhantes lutando para sobreviver por conta dessa concepção”.

Como podemos ser nesse cenário? É o caso de voltar ao Angelus Novus e seus “olhos encarquilhados” em busca das reminiscências de um tempo em que artistas acalentavam sonhos de progresso, projetavam um futuro otimista e, principalmente, viam a si mesmos como partícipes do poder constituído. Tudo isso não muito antes daquele tempo que atemorizava Walter Benjamin, olhos abertos para a escuridão.

Bravo!, junho de 2017
© Almir de Freitas