Em Trem de Nata, o italiano Andrea de Carlo sustenta uma narrativa nas imagens e nas descrições ostensivas
Quando se fala em gerações, registram-se automaticamente décadas, senhas rápidas para a identificação de certos valores, atalhos para classificações ligeiras, parâmetros que, em literatura, permitem uma familiaridade mínima com símbolos, estilos e, às vezes, algumas mistificações de época ou de nacionalidade. Muito diferente é o caso do milanês Andrea de Carlo, que não se deixa facilmente rotular por esse caminho com Trem de Nata, livro com que estreou como romancista, em 1981, e é lançado agora no Brasil com a presença do próprio autor, durante a Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Refratário tanto a esse tipo de recorte quanto àquele que se refere à própria tradição literária italiana, Andrea de Carlo espelha mais sua história pessoal, o que, ao mesmo tempo em que evita as chatices do confessional, abre caminho para um estilo único, ostensivo e às vezes violentamente imagético, como se a sua literatura fosse para ser vista, não lida.
Não por acaso, De Carlo foi fotógrafo e assistente de direção de Michelangelo Antonioni e Federico Fellini antes de estrear na literatura, com narrativas que não chamam grande atenção pela história em si. De fato, Trem de Nata é um caso peculiar em que a forma se sobrepõe ao conteúdo, ou melhor, a forma torna-se conteúdo, realizando – modestamente, que seja – um dos sonhos mais caros dos teóricos da arte. É verdade, não há nada de excepcional na história de Giovanni Maimeri, que sai de Milão para tentar a vida na Los Angeles (como aliás o fez o próprio De Carlo) de mexicanos e celebridades, numa curiosa mistura de La Dolce Vita com O Grande Gatsby. Em sua trajetória, Giovanni começa vivendo de favor numa casa embaixo de uma barulhenta freeway e termina dando aulas de italiano para uma estrela de cinema chamada Marsha Mellows. De um ponto a outro, numa trama em que personagens surgem e desaparecem subitamente, o que se destaca mesmo é uma experiência radical de descrição obsessiva e minuciosa, criando uma narrativa que, no entanto, se fecha rapidamente, como se fossem descrevendo círculos concêntricos em direção ao vazio de uma vida, desconfiamos, idiota. O exemplo mais claro, nitidamente trabalhado, está no início do livro, onde, em poucos parágrafos, Giovanni descreve o “reticulado infinito de luzes” de Los Angeles visto do avião, a expressão dos passageiros, a superfície da pista de pouso, o banheiro, a calvície que se pronuncia no “espaço livre acima da linha da sobrancelha” diante do espelho do saguão do aeroporto.
É nesse tipo de percurso descritivo que o protagonista e as pessoas à sua volta ganham forma; na experiência de olhar, de registrar fisicamente, que nascerá a ação e a narrativa. Não por coincidência Giovanni Maimeri é fotógrafo, como o próprio Andrea de Carlo. Nesse universo quase atemporal, a realidade se apresenta por meio de instantâneos, em que a complexidade psicológica do protagonista não é declarada, apenas sugerida. Na câmera mental que o separa do mundo, vemos seu mau humor evidente diante da feiura e no desconforto da poluição e do calor sufocante de Los Angeles; sua hostilidade na hostilidade dos circundantes; sua ambição na ambição desagradável que impregna a cidade; sua preocupação com o sucesso e o dinheiro na preocupação de outrem. Em contrapartida, quase todos os personagens são detestáveis, como ele mesmo se mostra detestável no mais das vezes. Não faltam mulheres gordas, figuras grotescas em Malibu, senhores suburbanos em Pasadena, mas também não deixam de ser observados os jardins de Beverly Hills ou a vista de Hollywood.
Na maioria das vezes, sua descrição é quase fria, transmitida com sensações que vão do distanciamento (“Não entendia bem o porquê, mas parecia que eu via a cena toda através de um vidro; não conseguia tocar em nada”) ao estranhamento (“Eu olhava para Marsha Mellows a trinta centímetros de distância e me parecia ver só suas fotografias; colocadas em sucessão para criar uma ideia de movimento. Olhava para estas fotografias de frente, de viés e de perfil”). Sua gama de imaginário visual é vasta, como um voyeur dotado de todas as ferramentas. Às vezes, imagina-se vendo sem estar sendo visto; noutras inverte o jogo: quando olham para ele (normalmente em uma posição ridícula ou tensa), descreve a reação dos assistentes. E, com frequência, enxerga-se de fora: “Via uma dezena de imagens de mim mesmo em Los Angeles, em papéis diferentes, mas sempre do outro lado das cercas e portões que eu ia espiar todos os dias”.
Igualmente recorrentes são as descrições puras, às vezes extremadas: “Cormàl foi até a mesa, deu sutilmente um passo à frente. Estava na ponta dos pés, longitudinal em relação à mesa: olhava fixamente um ponto no espaço entre o menu e as cabeças dos clientes”. Ou então: “Em determinado instante, virou-se completamente para o meu lado, com o tronco a sessenta graus em relação ao eixo das pernas”. Em meio a tudo isso, os personagens parecem por vezes mudos, tamanho é o silêncio que existe quando se encontram. As imagens são entrecortadas por diálogos banais. Nesse sentido, a narrativa é econômica, edita a comunicação ao mínimo, reduzindo-a quase que a expressões fáticas: não interessam. No mais das vezes, também os diálogos parecem estar sendo vistos de fora, apêndices incômodos das ações como “Disse ‘Tracy. Diga ao Ron para descer’” ou “Falou ‘bem, vamos indo, vamos indo’” ou, ainda, quando quase se aproximam do nada: “Disse algumas vezes ‘Você está muito bem’. Respondi ‘Vocês também estão muito bem’”.
Está certo, às vezes causa certa impaciência. Mas De Carlo está longe de ser gratuito, há uma lógica no seu estilo, um caminho que se delineia com precisão. Ver, registrar é a marca de sua relação com o que o circunda, no entanto, não é apenas a descrição pura que salta do texto, mas também o subtexto impronunciável que se extrai da sucessão de imagens, que exprime sobretudo (sem que seja usado um único adjetivo para isso) o tédio, a lentidão das coisas, a paralisia e, num outro contexto, a ansiedade, a expectativa e a euforia. Aos poucos, a banalidade da história deixa entrever seus propósitos, provoca o leitor. Longe de sociologias, morais, gerações ou tradições literárias, o indivíduo que surge é aquele que convive continuamente com milhares de signos que o rodeiam, continuamente afetando-o de algum modo difuso, mas que fazem sentido nas alegrias, tristezas ou mesmo na indiferença de sonâmbulos num mundo que exige certa dose de dureza, cinismo e hostilidade.
BRAVO!, maio de 2002
© Almir de Freitas