Brás Cubas sob efeito da morfina

Em Indignação, Philip Roth coloca em cena um “defunto-narrador” e combina o realismo de sua ficção com elementos de tragédia

Indignação, Philip Roth. Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras

Logo de cara, o leitor de Indignação, novo livro do americano Philip Roth, fica com a impressão de que não verá nada de muito novo. Nessa curta novela, o escritor retoma suas obsessões habituais: a família judaica, a relação conflituosa com o pai, a repressão nos anos anteriores à revolução sexual e o desprezo pelos republicanos. Até as referências ao beisebol estão de volta. A novidade fica por conta da estrutura que, ao radicalizar a ausência de surpresas, se tornará, por assim dizer, mais “surpreendente” — por mais contraditório que isso possa soar.

Da mesma maneira que os elementos da trama são conhecidos, o narrador, Marcus Messler, deixa claro, no capítulo Sob o Efeito da Morfina, que está contando a história que o conduzirá à morte em combate na Guerra da Coreia, em 1952, com 19 anos. Quase um narrador-defunto (ou defunto-narrador?), essa espécie de Brás Cubas judeu, filho de um açougueiro kosher da região metropolitana de Nova York, tratará de aproximar o habitual universo realista de Roth ao de uma tragédia clássica, quase que à maneira grega, em que o desfecho, mais que “surpreender”, tem de obedecer ao encadeamento dos fatos narrados.

LOUCURA PREMONITÓRIA

É assim que, antes de virar um Brás Cubas sob o efeito da morfina, Marcus Messler percorrerá uma trajetória semelhante, por exemplo, à de Édipo: as suas seguidas tentativas de escapar de seu destino (fatum) terão exatamente o efeito oposto. Como o rei de Tebas — que foge daquela que ele acredita ser sua família para evitar o parricídio e o incesto —, Messler passará sua curta vida adulta também fugindo. Primeiro da loucura “premonitória” do pai, que começa a temer pela sua morte. Depois, nas várias situações em que ele encara seu maior e mais frequente temor: ser expulso da universidade e, com isso, ser convocado para servir como soldado raso na Coreia, onde — era evidente para ele — morreria.

O que lhe acontece não é sua escolha nem lhe é imposto: como as tragédias, Indignação é uma novela sobre a fatalidade. Mas Roth, naturalmente, não vai buscar suas razões em supostos fatores transcendentais — o fatum, o destino —, mas na concepção de como “nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais”. Na ficção de Roth, esse imponderável pode ser vislumbrado, talvez, em outro lugar: na soma das fraquezas e temores de um homem em confronto com as mesquinharias do mundo e com a intolerância de uma época em que a indignação era um valor deslocado. E é por isso que, satisfeitos, continuamos a apreciar os temas habituais, velhos conhecidos, de Philip Roth.