Era no tempo do romance

Ao evocar Memórias de um Sargento de Milícias em seu novo livro, Ruy Castro deixa claro que não se contam mais histórias como no século 19

No século 20, falou-se tanto da morte do romance, e de maneira tão torta, que a menor menção a esse assunto soa como coisa ultrapassada e aborrecida. Contudo, não é coisa que deva ser esquecida. Mais ideológicos do que literários, os embates em torno do tema entre conservadores e vanguardistas acabaram por perder de vista as consequências. Uma delas é que escritores, vendo o gênero subir repetidas vezes ao patíbulo, se sentiram à vontade para fazer o que bem entendessem com a narrativa. Se o romance não existia, diria um protótipo de Dostoievski dos novos tempos, então tudo seria permitido.

Era no Tempo do Rei, do jornalista Ruy Castro, tem muito a ver com isso, e por várias razões. O título faz menção à frase que abre Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, justamente um representante do romance do século 19, período em que o gênero vivia seu auge. Publicado entre 1852 e 1853 em forma de folhetim, o livro retrata os costumes no Brasil após a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Do romance, Ruy Castro toma de empréstimo também seu protagonista, Leonardo. Em Era no Tempo do Rei ele é retratado durante a infância, num encontro fictício com o futuro D. Pedro I, então apenas um moleque traquinas de 12 anos. Na ocasião, Pedro conheceria e se identificaria com o Brasil “como ele é”.

BIOGRAFIA DE UM TEMPO

Combinada com alguma intriga palaciana, agregando malandros de rua, ciganos e ingleses maldosos, o livro evoca em tudo o romance de Manuel Antônio de Almeida, fazendo um retrato do país daquele anos — quase como se fosse uma “biografia de um tempo”, uma expressão cunhada por Carlos Heitor Cony, referindo-se ao gênero no qual Ruy Castro é um dos grandes. Esse parentesco com Memórias… na revelação de uma época é o maior mérito de Era no Tempo do Rei, mas é também o que expõe seus maiores defeitos.

Na forma de romance que espelha outro, o autor evidencia suas fragilidades narrativas. A pretendida homenagem a Memórias…, por vezes, vira apenas paráfrase — seja na reprodução da linguagem da época de seu predecessor, seja no trabalho de recontar algumas passagens do original. A seu favor, Ruy Castro tem um argumento original, mas, no conjunto, sai em desvantagem na comparação – uma situação em que ele se colocou.

Manuel Antônio de Almeida é, naturalmente, mais feliz na construção de personagens e, principalmente, na fluência narrativa — não por acaso, valores caros ao gênero do século 19. Mas o que mais incomoda não é a existência de personagens mais planos, lacunas e ritmo desigual: é a sensação de que certo cuidado com esses aspectos não é mais considerado importante. Se assim é, e se não temos nada melhor para colocar no lugar, então estamos de fato escrevendo um novo capítulo no longo obituário do romance.

BRAVO!, janeiro de 2008
© Almir de Freitas