Entreatos

Dezoito anos depois, A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é uma representação quase perfeita do país nas últimas décadas

A primeira impressão provocada por A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é a de que estamos diante de uma obra datada. Com uma trama que se passa em 1962, o livro foi publicado com uma tiragem reduzida pela Editora Guanabara em 1987 — um tempo em tudo distante do que vivemos agora, em 2005. A passagem do tempo, entretanto, acaba contando a favor deste livro definido como um “romance-teatro”, numa feliz convergência entre suas técnicas narrativas, o acaso do mercado editorial e a própria história do Brasil nestas últimas quatro décadas.

Dividido como uma peça de três atos, o livro tem justamente nas suas várias gradações, internas ou externas, seu elemento-chave. No primeiro ato, predomina a linguagem teatral, embora seja evidente que o palco a que Sant’Anna recorre não se presta à representação cênica; ele é uma fórmula que serve para agregar novos recursos à narrativa. É por meio dessa dramaturgia imaginária que se conta, logo de início, a história do atropelamento da menina de 12 anos Jacira, morta pelo personagem do Motorista quando lhe despontavam os pequeninos seios, surgiam as penugens púberes, manchava-se o vestido de sangue pela primeira vez.

Não faltará o erotismo típico de Sant’Anna, que vai de um tom rodriguiano de dessacralização da inocência até um mais provocador, com um pouco de pedofilia, e resvala em sugestões de necrofilia. Aqui e ali, apresenta-se um pouco daquele país que saía do pós-desenvolvimentismo de JK, preocupado com a contusão de Pelé na Copa do Chile e em dúvida se a solução para o Brasil estava nas mãos de Deus ou nas dos militares. Perguntas de quem se pôs a escrever duas décadas depois, quando já se tinha passado pela ditadura e o país do futebol andava meio traumatizado com o jejum de títulos.

Novas possibilidades, então, vão surgindo. À medida que Sant’Anna investe mais na prosa, desenham-se outros cenários e personagens. No segundo ato, Jacira se confunde com a atriz que a representa; o Negro misterioso, que espreitava a menina de um terreno baldio, reaparece como contra-regra; e o melancólico e apaixonado Poeta Roberto, que de sua janela viu a tragédia, mostra ser, em parte, uma idealização pessoal do demasiadamente humano Autor-Diretor, que é, lá pelas tantas, um eco do próprio Sant’Anna.

A partir do terceiro ato, a encenação se apresenta mais como ideia, e é quase como um romance de ideias que se cria um terceiro nível de ficção, em que já não há mais limites: unem-se as pontas da dramaturgia e da prosa, da representação e da “realidade”. Como num círculo, voltamos à tragédia por meio de Maria Altamira, Virgem pura transformada em estrela radiante no momento em que estava também prestes a deixar a infância, atropelada por um Motorista de caminhão na Belém-Brasília — um dos símbolos de uma já antiga concepção de progresso e, também, esboço de metáfora religiosa.

Já aqui, na própria narrativa, as perguntas são outras. E hoje, quase 20 anos depois de o livro ter sido escrito, temos tantas outras a acrescentar. No ato que encerra as três épocas da história da obra, a tragédia persiste. Orgulhosos de um futebol pentacampeão, também nos vemos — arrasadas de vez quaisquer ilusões políticas construídas desde os anos 80 — sem rumo. É como se Jacira renascesse e morresse perpetuamente, deixando no céu a luz de uma estrela incerta, que talvez leve a um lugar que não este.

BRAVO!, outubro de 2005
© Almir de Freitas