Em seu novo romance, Milton Hatoum mostra domínio perfeito da escrita e constrói um grande livro a partir de uma história simples
Na literatura, são comuns os casos de bons argumentos desperdiçados por uma realização deficiente. Seja porque aquelas ideias resultem impronunciáveis no manejo de uma narrativa que se propõe a dizer alguma coisa, seja porque os cacoetes técnicos do escritor se sobrepõem a essa mesma e necessária comunicação com o leitor, acabando por resultar num formalismo oco. O notável, e raro, é encontrar um grande livro que parte de um argumento simples, ao mesmo tempo em que não cede aos truques da prosa fácil nem abre mão dos variados recursos da língua. Cinzas do Norte, que marca o retorno de Milton Hatoum cinco anos depois do sucesso de Dois Irmãos, é emblemático de todas essas virtudes, mostrando como um escritor pode ser completo no domínio do seu ofício.
De fato, não há grandes novidades na trama do romance. A história se passa na lonjura amazônica, entre os primeiros anos do Golpe Militar de 1964 até a abertura democrática dos anos 1980. Nesse período, acompanham-se principalmente as trajetórias paralelas de Lavo (o narrador) e Mundo (o protagonista central), da infância à idade adulta. O primeiro, órfão e criado pela tia costureira e o tio folgazão, torna-se ao fim advogado de detentos esquecidos nas prisões; o segundo, filho de uma rica e tradicional família exportadora de juta da região, torna-se artista plástico, rebelando-se contra a rigidez disciplinar e os valores do pai.
Mas, como em quase todo romance em que o resultado é superior ao argumento, qualquer sinopse é insuficiente para dar conta de Cinzas do Norte. Vai se enganar, por exemplo, quem presumir que a ditadura militar exerce um papel central no romance; quem pensar que há digressões humanitárias ou políticas; quem esperar um panorama artístico e cultural do período. Os elementos que compõem o cenário para a trama de Milton Hatoum estão lá e têm, é verdade, um propósito, mas o fundamental está mais naquilo que não se diz diretamente: há em Cinzas do Norte uma atmosfera que cerca os personagens, mas que só pode ser apreendida na própria narrativa, à medida que se avança no romance.
É preciso, para tanto, talento e técnica. Para além dos elementos “cenográficos”, de contexto, da arquitetura de paisagens e tipos humanos, é preciso que se saiba captar os ecos de uma época e de um lugar, para traduzi-los em palavras que expressem a relação de seus personagens com o mundo e com a vida — que, no fim das contas, é tudo o que importa. Em Cinzas do Norte, é uma construção que se vê paciente, lapidada numa sofisticada combinação de descrições, diálogos, narrativas subjetivas e altercação de vozes, limpa de ideias preconcebidas, fórmulas gastas, perorações aborrecidas.
É assim que, nas trajetórias de Lavo e Mundo, reencontramos, ao mesmo tempo com surpresa e familiaridade, a história de vidas que ficaram pelo caminho, os amores irrealizados pelo medo, as esperanças que se perderam no tempo. É quando escritor e leitor, reunidos no pacto silencioso da palavra que aponta para um mundo em que nada lhes é estranho, recolhem, cada um a seu modo, os restos calcinados em um lugar não tão distante.
BRAVO!, setembro de 2005
© Almir de Freitas