Nos contos de Faca, Ronaldo Correia de Brito concilia a tradição regionalista com uma noção de fatalidade que não conhece tempo nem lugar
É aventura temerária aquela do escritor que ainda hoje se atreve a embrenhar-se pelo sertão nordestino seguindo a trilha aberta pela literatura regionalista brasileira. Não porque seja ele território desconhecido, mas justamente pela razão contrária: a antiga terra ignota dos modernistas da primeira metade do século 20 já não parece guardar tantos mistérios assim. Já explorado em dúzias de obras, esse universo de geografia inclemente e tradições arcaicas carrega o risco de ser reproduzido segundo velhas e gastas fórmulas, obedecendo a um esquema gravado no imaginário coletivo. Que segredos o fim do mundo pode ainda guardar?
Faca, coletânea de contos do cearense Ronaldo Correia de Brito, é um dos livros que mais se aproximaram de responder a essa pergunta recentemente. E o faz de um modo bastante curioso: na superfície, não há nada nele que surpreenda. Ao longo de suas 11 narrativas, surgem as mesmas situações e personagens que a tradição literária tornou familiares: amores abismados até a morte, honra, traições, emboscadas, vendetas, valentões, bandidos e mulheres virilizadas em um mundo hostil e duro. Não falta nem mesmo, aqui e ali, a musicalidade daquela linguagem de coloquialismos estranhos, mas exatos na expressão de angústias e perigos, com seus “rastros de gemidos e desfeitas”, “dolorosos aboios” e “cerrações de unha-de-gato”.
Contudo, em cada uma dessas características conhecidas, Brito insere, com o cuidado de quem parece saber que nem tudo pode ser dito, os sinais que apontam para uma realidade que, não importa o quanto se pense decifrada, segue um ritmo que nos escapa. Nos enredos de Faca, predomina uma noção de atemporalidade que não é apenas aquela que se entrevê na persistência dos valores de um passado longínquo e na sucessão das horas mortas: ela está, sobretudo, numa espécie de fatalidade essencial, que conduz tudo e a todos ao desaparecimento, ao esquecimento, à morte.
É aí que o escritor encontra a sua singularidade. Em Faca, Brito retorna, por exemplo, a um dos arquétipos mais antigos da tragédia: a de que o mal surge no seio da própria família, que, ao fim, é encaminhada para a extinção. Em Redemunho, um dos melhores contos do livro, isso surge exemplarmente no confronto entre filho e mãe, os últimos remanescentes de uma família aristocrática: ele, traído pelo irmão; ela, cúmplice do crime. Em Inácia Leandro, o embate se dá entre irmão e irmã; em Cícera Candóia, entre filha contra a mãe, numa família marcada pelo parricídio. Mesmo em Faca, Mentira de Amor e A Escolha, em que os crimes envolvem, em circunstâncias as mais diversas, marido e mulher, as razões nunca são passionais no sentido habitual: há algo mais perverso – como um destino que não pode ser evitado.
De certo modo, o mundo arcaico de Faca funciona como uma espécie de pretexto para voltar a perscrutar aqueles segredos que são próprios do ser humano e independem de época ou de lugar. A terra ignota da literatura regionalista é, na verdade, o território dos terrores mais íntimos e antigos do homem – é quando, para se usar uma expressão consagrada, o regional se transforma em universal. Se um escritor como Ronaldo Correia de Brito consegue ao menos se aproximar dessa humanidade primitiva, escapando das armadilhas das fórmulas gastas, seu papel está cumprido. Mesmo que, no fundo, suas histórias sejam sempre tragicamente conhecidas.
BRAVO!, abril de 2003
© Almir de Freitas