Luiz Vilela confirma ser um dos maiores contistas do país com A Cabeça, livro em que mostra raro domínio da técnica do diálogo
Pode-se contar nos dedos quem, entre os contistas brasileiros em atividade hoje, é capaz de ser bem-sucedido no uso de uma das técnicas aparentemente mais simples da escrita: o diálogo. Direto ou indireto, puro ou diluído na prosa, com travessões ou entre aspas, ele quase sempre aparece, com raras exceções, como um apêndice incômodo, como se os outros, esses seres infernais, existissem apenas para estorvar o “fluxo de consciência” ou as considerações gerais do personagem-autor sobre o mundo ou, mais ainda, sobre si mesmo. Pertencente a uma geração anterior, sem publicar havia oito anos, o mineiro Luiz Vilela mostra com o livro A Cabeça por que é considerado um dos melhores contistas da literatura contemporânea no país, entre outras razões por seu raro domínio em colocar pessoas falando umas com as outras, essa coisa tão comum, tão banal. E aí talvez esteja precisamente a explicação da dificuldade em fazer de uma conversa literatura.
Nos dez contos de A Cabeça, que reúne algumas histórias já publicadas em jornais e revistas, Vilela coloca em funcionamento essa técnica em níveis extremos. Econômico ao máximo nas descrições e nas ponderações, não exercita apenas uma formalidade estilística, mas usa o diálogo como um instrumento para tramas que vão sendo elaboradas nas várias formas de interlocução – o que inclui também os silêncios, os hiatos fáticos, as informações fragmentadas e por vezes mesmo a simples desinteligência entre os personagens. Do “não-dito” de Mosca Morta, por exemplo, transmite a atmosfera de mal-estar que toma conta do personagem; na escatologia coloquial de Luxo, brinca com o limite no que “deveria ser dito” e, em Freiras em Férias, nas várias coisas que supostamente não deveriam ser ditas. Em outras habilidosas variações, Rua da Amargura é construída na própria hesitação de se dizer algo terrível e, em Calor, ao contrário, a narrativa se dá no jogo de ambiguidades de uma conversa que, apesar de previsível o final, se arrasta em assuntos irrelevantes.
Mas há também a forma mais tradicional, em que os personagens revelam suas características por meio do que dizem claramente, ou melhor, da forma como dizem. É quando o universo da classe média, típica da obra de Luiz Vilela, vem à tona, apresentando um mundo no final das contas de gente simples, mas nem por isso estereotipado ou vazio. Renunciando a subjetivismos, o autor sugere com eficiência um amplo espectro de complexidades humanas e sociais que nasce no contexto em que as palavras, em estado bruto, são pronunciadas. Assim, surgem sem alarde fundas angústias pessoais em A Porta Está Aberta, desemprego em Suzy, politicagem em Más Notícias, e violência em A Cabeça, que, também, serve de pretexto para falar com humor do homem, da mulher, de Deus e da Criação.
Leviandade? Longe disso. Há sempre uma moral implícita, não-declarada, nas histórias de Luiz Vilela, que surgem quando esse mundo prosaico para o qual ele atenta sofre uma fissura e abre espaço, mesmo que por apenas alguns segundos, para o extraordinário. E, olhando bem, a sensação que fica é de que seus personagens não estão imbuídos do Mal, ainda que egoístas algumas vezes, mesquinhos em outras. Mas são sobretudo fracos, defrontados com esse limiar entre a banalidade e o mistério, lembrando vagamente o que há de mais-que-humano-em-nós, essa coisa que se acostumou atribuir a alguma ficção filosófica. Mas essa gente está por aí. Difícil é ouvi-los. Mais difícil é fazer a gentileza de conceder-lhes a palavra.
BRAVO!, agosto de 2002
© Almir de Freitas