Uma Missa para a Cidade de Arras, do polonês Andrzej Szczypiorski, mostra que os horrores da razão podem ser piores que os do fanatismo
Não é difícil apontar os estragos que a fé levada a extremos é capaz de provocar, ainda mais nos dias que correm. Mas a história mostra também que nem só de fanatismo se alimenta o horror, e que, com frequência, é justamente seu antípoda – a razão – quem engendra os pesadelos que assombram a humanidade. É na exploração das nuances dessa dualidade entre racionalidade e fé que se baseia a narrativa de Uma Missa para a Cidade de Arras, do polonês Andrzej Szczypiorski (1924-2000), um escritor que sentiu na pele tanto a violência dos nazistas quanto a dos comunistas, tendo sido preso em um campo de concentração pelos primeiros durante a Segunda Guerra Mundial e, pelos segundos, durante a Lei Marcial dos anos 80.
Uma Missa…, escrito em 1968 com base em uma história verídica, tem um potencial explosivo raro, embora a premissa inicial pareça banal. O cenário, época e personagens não poderiam ser mais adequados a ela: chefiada por Leonardo, um clérigo fanático, Arras é uma cidade da França devastada pela peste, na segunda metade do século 15. Selados os portões do burgo pelo bispo da região – Davi, um símbolo de bom senso e dureza –, a população, esfaimada e morrendo às moscas, decai para a barbárie, praticando canibalismo, incesto e homicídio. “Havia nisso algo de uma cruel libertação”, diz retrospectivamente o narrador, João, um importante personagem da cidade que se caracteriza por uma covardia tão grande quanto sutil.
A frase serve mais do que para causar efeito: antecipa que, surpreendentemente, o pior ainda estava por vir. Cessada a peste e reabertos os portões, Arras retoma o curso da vida. Mas tudo está mudado. Leonardo, impotente com sua fé cega durante a crise e subjugado pela razão de Davi, dá à plebe o direito de votar no Conselho do burgo. É a partir daí – e não antes – que as maiores atrocidades são cometidas, com perseguições que atingem, em primeiro lugar, os judeus e as “bruxas”, e, depois, os próprios notáveis de Arras, que, agora, devora a si mesma, numa violência que ganha canais institucionais, “civilizados”, “racionais”, ou, mexendo com o perigo, “democráticos”.
“De modo algum quero dizer que a isso tudo deve atribuir-se à iniciativa de carpinteiros, tecelões e ferreiros”, escreve João, que não deixa de observar, contudo, que eles estão a obedecer Leonardo nas suas decisões. “Faltava-lhes aquela orgulhosa certeza que acompanha os bem-nascidos a vida inteira.”
A questão não é fácil de encarar, mas nela está o ponto crucial de Uma Missa…Não se escapa aqui da história pessoal do escritor e suas atribulações com toda a forma de poder, em que a “razão” nunca passou de uma palavra de múltiplos e indefinidos significados. Inclusive, diga-se, para os sindicalistas do Solidariedade, com quem o autor, sintomaticamente, rompeu relações por suas práticas direitistas e populistas tão logo eles chegaram ao governo.
Pode-se dizer que para Szczypiorski o poder – naturalmente – “corrompe o homem”, mas em sua narrativa essa noção, também banal, se dá por meio do contraste que se estabelece com a selvageria anterior de Arras, que sempre merecerá perdão e sempre deixa entrever uma esperança. Mas nada sobra quando as utopias se dissolvem e o assassinato institucionalizado ocupa o lugar da cólera, a arrogância substitui o desespero e a autoridade, corrompida, pode fazer mais estragos que a loucura e o fanatismo aberto. Como diz Octavio Paz no ensaio O Labirinto da Solidão, o homem, com a pretensão de sonhar acordado, percorre os corredores de um sinuoso pesadelo. “Ao sair”, escreve, “talvez descobriremos que tínhamos sonhado de olhos abertos e que os sonhos da razão são atrozes. Talvez, então, comecemos a sonhar outra vez com os olhos fechados.” Diante disso, provavelmente o melhor seja ficar com o bordão de João, repetido várias vezes durante Uma Missa…: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.”
BRAVO!, fevereiro de 2002
© Almir de Freitas