Fracos, óbvios ou cifrados, títulos são capazes de azedar de saída a relação que o escritor, desajeitado, pretendia estabelecer com seu leitor. Alguns, por outro lado, são felizes a ponto de serem indissociáveis do conjunto, chaves que destrancam o que se segue nas páginas internas. “O Senhor Agora vai Mudar de Corpo” é um desses raros casos em que, ainda por cima, o leitor não sai desapontado.
Curto, com pouco mais de cem páginas, o novo livro de Raimundo Carrero inicia sua relação com o leitor com a força dos que têm uma experiência extrema para contar. “O Senhor” é um relato, romanceado, dos dias que se seguiram a um AVC que deixou o lado esquerdo do corpo do escritor virtualmente paralisado.
Mas a força, Carrero sabe, é também uma fraqueza: situações tão terrivelmente pessoais, físicas, só podem ser compartilhadas até certo limite. Como pedir verdadeira empatia com o espanto, a consciência da decadência, a morte se anunciando?
Mais ainda: como falar da própria condição sem transformar a coisa toda em monólogo autocentrado –desses que, por definição, não estão nem aí se os ouvintes estão interessados.
Carrero toma todos os cuidados. A primeira providência –ovo de Colombo– foi “mudar de corpo”: deixar o relato em primeira pessoa de lado e assumir a terceira. É mais que mero artifício. Trata-se de uma afirmação de ofício que se mistura à da vida, na ideia de que a mais infinita solidão pode ser expressa em palavras.
TEATRO DE SOMBRAS
Ao mesmo tempo, é a mudança do corpo sadio para o enfermo. É o corpo do personagem O Escritor quem protagoniza cada um dos capítulos: ele e “o crime”, “as sombras”, “as fezes”, “as “aranhas”, “o Cristo”, “a arte”, “os miseráveis”, “a política”, “a luz” e… “la nave”.
Cada um desses temas funciona como parte de uma espécie de testemunho estético: é um relato pessoal, sim, mas também a representação literária da vida e da morte –a única que alcança todos os ouvidos.
Na “doença como metáfora” de Carrero, o mundo de sombras que se abate sobre O Escritor é feito de Carnaval, Dostoiévski, imagens bíblicas em falsete, mangue, Sarita Montiel e Ariano Suassuna.
O insidioso armorialismo se revela também em visões quase medievais –na sujidade escatológica da cidade ou na silenciosa procissão formada pelo Velho, o Homem Gordo, o Anão, o Homem Magro, a Mulher Grávida, personagens de uma pantomina macabra.
Nem sempre funciona, é claro –há momentos em que o enfermo e o escritor se confundem, em que a primeira pessoa insiste em voltar à cena. Não deixa de ser justo. E não é muito problema: no fim, “O Senhor…” faz o relato da doença, mas o deixa para trás. No corpo novo, frágil mas capaz de falar sobre as perplexidades do mundo, o que vai à frente do cortejo é mesmo a literatura.
Folha de S.Paulo, fevereiro de 2015
© Almir de Freitas