Entre o amor e a compulsão, entre o sobressalto da paixão e a morte, Felipe Hirsch evoca o mundo dos livros na atmosfera platina de Severina
Existe algo de fascinante na ideia de roubar livros. Na vida real ou no mundo da ficção, não são muitos os ladrões capazes de desafiar códigos morais com uma delicadeza que não passa pelas pobres fábulas de justiça social. Como se o desapego deles ao valor estritamente material do objeto subtraído (quando é o caso) fosse capaz não apenas de absolvê-los do ato, mas também de fazer frente, eticamente, aos sétimo (não roubarás) e décimo (não cobiçarás o que é do próximo) mandamentos de Deus. Ou, ainda, aos pecados capitais da avareza e do orgulho — este último, quase sempre companheiro do fetichista.
Severina, filme de Felipe Hirsch que estreia no Brasil nesta quinta-feira (dia 12), volta a tirar partido desse paroxismo moral, entre as paredes tomadas de livros da La Entretenida, livraria instalada num bairro histórico-decadente de Montevidéu. O alfarrábio é tocado por R., um homem imaginoso e tranquilo (Javier Drolas), que vive a vida entre saraus de segunda-feira e um vago desejo de ser escritor. Tranquilidade que se esvai com a aparecimento de Ana (Carla Quevedo), argentina de beleza notável, vida enigmática e mãos leves.
Na história, baseada na obra do guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, amor e compulsão (sentimentos nada desconhecidos dos ladrões de sebos, aliás) se entrelaçam em meio a referências ao mundo dos livros. Nada melhor, então, que iniciar o filme com a leitura de um romance cheio delas, Ada ou Ardor, do russo Vladimir Nabokov — trecho que funciona como um spoiler inofensivo:
“(…) as vidas dos indivíduos consistem em certas coisas classificáveis, divididas entre as reais, que são raras e valiosas; as simples, que são ordinárias e normais; e as fantasmas, ou ‘névoas’ — como febre, dor de dente, terríveis decepções… três ou mais coisas que acontecem ao mesmo tempo formam uma torre; se ocorrem em sucessão, formam uma ponte. Torres reais e pontes reais são as alegrias das vida. E quando as torres ocorrem em série, experimenta-se o supremo êxtase. Mas raramente isso acontece. Em algumas circunstâncias, e sob certa luz, uma coisa simples pode parecer se transformar em uma coisa real. Ou, ainda, pode transformar-se rapidamente em uma névoa espantosa. Quando alegria e ausência de alegria se misturam, simultaneamente ou ao longo do tempo, o resultado é uma torre em ruínas ou uma ponte quebrada.”
Dali, entre o sobressalto da paixão na vida do homem comum e a morte, enfileiram-se As Mil e uma Noites; o poema Primeira Canção Trágica, do argentino Juan Rodolfo Wilcok em performance de Carlito Carvalhosa; Duas Damas de Respeito, de Jane Bowles; O Livro do Céu do Inferno, de Jorge Luis Borges e Bioy Casares. E outros tantos, lidos ou pronunciando-se em cena aqui e ali — muito deles garimpados por Hirsch em suas leituras para as peças A Tragédia Latino-Americana (2016) e A Comédia Latino-Americana (2017).
Déjà vu e libertação
Mas as referências não cessam, estendendo-se à própria cinematografia. Severina é um filme que se assiste com uma permanente sensação de déjà vu. Cada enquadramento — através dos vidros de portas e janelas ou às costas dos personagens, por exemplo — remetem a uma construção visual desse mundo platino que constitui a essência do filme. No fim(lá vai mais um spoiler sem mal nenhum), a dedicatória a Hector Babenco reforça essa sensação do já visto. Há um eco de Coração Iluminado e, especialmente, dos silêncios de O Passado, adaptado da obra de outro escritor latino-americano, o também argentino Alan Pauls.
Na fotografia magistral por Raul Poças, essa atmosfera se apresenta nas ruas desertas, com janelas e portas cerradas, à noite ou sob a luz da alvorada, como se a solidão dos personagens se diluísse numa cidade abandonada, formada por fachadas de prédios gastas como lombadas de livros antigos, pichadas como se fossem anotações às margens. Um cenário de sonho, fantástico, em um tempo que parece distante em meio às montanhas de papéis, novas e velhas. A esse respeito, se cabe uma referência externa — uma anotação à margem deste leitor-espectador — ela bem poderia ser o trecho final de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade:
“ (…) O sebo é a verdadeira democracia, para não dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e humildes. Saio deles com um pacote de novidades velhas, e a sensação de que visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, contra o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão.”
Com o que os bibliomaníacos larápios concordariam.
Bravo!, abril de 2018
© Almir de Freitas