“Pape Satàn Aleppe” reúne os últimos textos de um Umberto Eco às voltas com a internet e a “sociedade líquida”
O filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016) foi daqueles intelectuais difíceis de definir com alguma rapidez. Medievalista, semiólogo e bibliófilo (com certa obsessão pelo universo fabuloso de Jorge Luis Borges), criou um caso sério com as ideias frankfurtianas sobre a indústria cultural, no já proverbial Apocalípticos e Integrados (1964). Foi original, em especial, na abordagem da comunicação de massa a partir da perspectiva da semiótica, e, matreiro, ainda se deu ao luxo de aplicar seus prazeres e concepções na realização de um arrasa-quarteirão de vendas, o romance O Nome da Rosa (1980). Que ninguém duvide que ele sabia do que estava falando sobre os mass media, ainda por cima se divertindo.
Por uma óbvia razão geracional, o pensamento e produção de Eco sobre a cultura e comunicação na era internet é bastante reduzida, e muito limitada a crônicas que ele escreveu para a imprensa diária italiana. Lançado agora no Brasil, Pape Satàn Aleppe — Crônicas de Uma Sociedade Líquida reúne parte dessa produção derradeira, e os temas cumprem o script da mescla de erudito e pop, outra marca do seu pensamento.
Templários (de novo), Harry Potter, comunismo, hackers, 11 de Setembro, astrologia, George Orwell, romance policial (como sempre), quadrinhos, 007, antissemitismo, felicidade, relativismo, Berlusconi, mídia (claro), universidade, Alessandro Manzoni (c0mo de hábito), pornografia, fundamentalismo, morte (c0mo é inevitável). Tudo meio de passagem, alguns com certa — e natural, suponho — poeira do tempo que envolve a percepção do contemporâneo na vida de um octagenário.
300 milhões de imbecis
Mas o mais curioso são, justamente, os textos em que Eco trata de internet e, principalmente, de redes sociais. No último texto do livro, Os Imbecis e a Imprensa Responsável (2015), ele comenta a maior polêmica que protagonizou sobre o assunto. Foi em 2015, quando noticiou-se que ele teria afirmado, durante um evento em Turim, que “a internet está cheia de imbecis”. Quem se lembra do episódio sabe que, mais exatamente, ele disse que a internet amplificou a voz do imbecis na internet. Sutileza e precisão não prosperam nas redes, bem sabemos.
“Admitindo que em 7 bilhões de habitantes exista uma taxa inevitável de imbecis, muitíssimos deles costumavam comunicar seus delírios aos íntimos ou aos amigos do bar — e assim suas opiniões permaneciam limitadas a um círculo restrito. Hoje, uma parte consistente destas pessoas tem a possibilidade de expressar as próprias opiniões nas redes sociais e, portanto, tais opiniões alcançam audiências altíssimas e se misturam com tantas outras ideias expressas por pessoas razoáveis (…) É justo que a rede permita que mesmo quem não diz coisas sensatas se expresse, mas o excesso de besteira congestiona as linhas. E algumas reações descompensadas que vi na internet comprovam minha razoabilíssima tese.”
Nas redes, as “reações descompensadas” tinham mil motivos, poucas considerando a questão real. Como havia dito também que os imbecis tinham ganhado o mesmo direito à palavra que um Nobel, desencadeou-se, por exemplo, uma discussão se ele, Eco, havia recebido ou não o prêmio da Academia Sueca, “sem que ninguém consultasse sequer a Wikipedia”.
“Digo isso para mostrar a tendência evidente a falar a esmo. Em todo caso, já podemos quantificar o número dos imbecis: são 300 milhões, no mínimo. De fato, parece que nos últimos tempos a Wikipédia perdeu 300 milhões de usuários. Todos são navegadores que não usam mais a web para buscar informações, mas para fica on-line conversando (talvez a esmo) com seus pares.”
Ctrl c + Ctrl v
A confiabilidade da informação na web, naturalmente, é o aspecto central. Mas Eco estava longe de se render (justo no fim da vida?) à turma apocalíptica. Em Internet Demais? Mas na China… (2000), descreve o seguinte debate:
“Diante de alguém que celebrava a internet como a chegada da democracia total na ordem da informação, um outro objetou que hoje um jovem pode deparar com centenas de sites racistas na rede, pode baixar Mein Kampf ou Os Protocolos dos Sábios de Sião. Resposta: se você sair daqui e entrar na livraria ocultista da esquina, também vai encontrar uma edição dos Protocolos. Contrarresposta: claro, mas teve de procurar pelo livro, enquanto na rede ele pode surgir na sua frente mesmo que estivesse procurando outra coisa. Contra contrarresposta: mas ao mesmo tempo pode cair também em inúmeros sites antirracistas e, portanto, a democracia da rede se compensa por si mesma. Intervenção final: Hitler publicou e divulgou Mein Kampf antes que a internet existisse e, a quanto se sabe, deu certo. Com a internet não seria possível acontecer um outro Auschwitz, pois todos ficariam sabendo rapidamente e ninguém poderia dizer que não sabia.”
Em Como Copiar da Internet (2006), fala dos prós e contras da Wikipedia, dos sites mal-intencionados e dos estudantes que fazem monografias com o Ctrl + Ctrl V. Primeiro de tudo: chupar conteúdo de terceiros era também um hábito que existia antes da internet — só dava mais trabalho manual. Segundo: “copiar bem é uma arte nada fácil, e um estudante que sabe copiar bem tem direito a uma boa nota, (…) e um bom docente sempre nota quando um texto é copiado e percebe a fraude (se for bem copiado, repito: tire-se o chapéu).”
E ainda dá uma possível solução pedagógica:
“Contudo, considero que existe um modo muito mais eficaz de desfrutar pedagogicamente dos defeitos da internet. Dar como exercício em sala de aula, pesquisa em casa ou trabalho universitário o seguinte tema: “Sobre o assunto X, encontrar na internet uma série de textos improcedentes e explicar por que não são confiáveis.” Eis uma pesquisa que exige capacidade crítica e habilidade no confronto das diversas fontes — e que exercitaria os estudantes na arte da discriminação.”
140 caracteres
Em Aquelas Porras de Raios Cósmicos (2013), sobre a superficialidade o Twitter e do SMS (dá para o leitor incluir por conta o Whatsapp, que escapou a Eco):
“Já foi dito que também os SMS levam os nossos jovens a usar e entender apenas uma linguagem telegráfica (tipo “Te amo D+”), esquecendo que o primeiro telegrama foi enviado por Samuel Morse em 1844 e, mesmo assim, depois de anos e anos de ‘Mamãe doente venha logo’ ou ‘parabéns afetuosos Catarina’, muita gente continuou a escrever como Proust. (…) Quanto ao fato de que o Twitter educa à essencialidade, creio que é um exagero. Com 140 caracteres já se corre o risco de ser prolixo. É verdade que esta citação — ‘No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era informe e vaga, as trevas cobriam o abismo e o sopro de Deus agitava a superfície das águas.’ — é digna do prêmio Pulitzer porque em 146 espaços (mas 117 caracteres) diz exatamente aquilo que o leitor quer saber.”
Por fim, sobre ele mesmo, Umberto Eco, e as redes sociais.
“Não tenho Twitter nem estou no Facebook. A Constituição me permite isso. Mas é claro que há no Twitter um falso perfil meu, assim como de um falso Casaleggio. Certa vez uma senhora me disse com o olhar cheio de reconhecimento que sempre me lê no Twitter e que já interagiu muitas vezes comigo, para seu grande proveito intelectual. Tentei explicar que se tratava de um falso eu, mas ela olhou para mim como se estivesse dizendo que eu não sou eu. Se estava no Twitter, eu existia. Tuíto ergo sum.”
Apocalíptico decididamente não. Mas nem por isso (justo no fim da vida?) obrigado a se integrar.
Bravo!, julho de 2017
© Almir de Freitas