Hotel Ruanda dá sequência à linhagem de filmes que têm como protagonistas cidadãos reais que lutam por causas nobres
Quem lida com cinema costuma saber o que o público quer, e a receita de heróis contra vilões quase nunca falha. A variante mais óbvia delas é aquela que confere poderes especiais ao mocinho, desde o pistoleiro certeiro dos faroestes até os super-homens dos quadrinhos. Mas há uma outra, não tão popular, mas igualmente eficaz, que opta por retratar esse herói como um homem comum em luta contra um mundo injusto e violento. A ideia é ir além do entretenimento, para que os filmes sirvam de instrumento de “denúncia”. É uma proposta perigosa, e não são raras as produções sofríveis. Mas às vezes algum se salva – e até pode expor questões relevantes, tanto do cinema quanto da política. É o caso de Hotel Ruanda, que, depois de concorrer a três Oscars (roteiro, ator e atriz), chega ao Brasil com alguns meses de atraso.
O herói aqui é Paul Rusesabagina (Don Cheadle), que, como acontece com frequência em filmes desse gênero, existiu de fato. Gerente de um hotel de luxo em um pequeno país centro-africano, Ruanda, ele abrigou cerca de 1,2 mil refugiados durante o genocídio de 1994. Na época, milícias formadas pela maioria hutu mataram cerca de 800 mil pessoas, principalmente da minoria tutsi, cujo exército rebelde foi acusado de abater o avião presidencial logo após a assinatura de um acordo de paz – uma história, aliás, que nunca foi bem esclarecida.
A comparação – já feita por muitos – entre Paul Rusesabagina, um hutu, e Oskar Schindler, o industrial alemão que salvou centenas de seus operários judeus dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, é inevitável. Tanto no Hotel Ruanda quanto no A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, o que vemos são personagens que pertencem aos estratos dominantes; ambos prosperam, no início de suas trajetórias, à custa de adulação aos poderosos; e, naturalmente, se dispõem a sacrificar a vida.
Mas mesmo no cinema a bondade tem seus matizes. Schindler é um homem que se desestrutura aos poucos, à medida que vai se misturando ao mal absoluto do nazismo: testados seus limites morais, não resiste psicologicamente. Já Rusesabagina não tem esse tempo: do dia para a noite é obrigado, premido pelas circunstâncias, a se posicionar. A morte aqui não é limpa, distante como a dos campos de concentração; ela acontece à luz do dia, no meio da rua, a golpes de facão. Barbáries distintas produzem heróis distintos, e bons filmes, como os dois citados, sabem como captá-los e dar-lhes força dramática. Não há uma receita pronta.
POLÍTICA E NARRATIVA
Há ainda outras diferenças. Ao contrário do Holocausto, cuja matança foi retratada inúmeras vezes pelo cinema, detalhes de conflitos locais na África não são, em absoluto, conhecidos. No máximo, tem-se uma imagem, por alto, das desgraças do continente. Em Hotel Ruanda, há o desafio adicional de explicar para o público o que está acontecendo, com o mínimo possível de prejuízo à fluência da narrativa. Não é fácil.
Mas o diretor Terry George se sai relativamente bem. Numa cena inescapável, o jornalista Jack Daglish (Joaquin Phoenix) faz a pergunta-chave a duas mulheres no hotel: qual é a diferença entre hutus e tutsis? Etnicamente, nenhuma – ele fica sabendo junto com o público. A separação foi feita de maneira praticamente aleatória pelos belgas no período de colonização. Os mais “delicados”, mais parecidos com europeus, foram catalogados como tutsis. O restante, mais “africano”, de hutu. Daí a origem da rivalidade. Explicado, a vida segue: Daglish convida uma das mulheres a ir a seu quarto.
Em outros momentos, e para fazer a denúncia a que se propõe, o diretor consegue soluções melhores. No curso dos acontecimentos, demonstra a omissão dos americanos diante da chacina, a mobilização militar europeia com a intenção de resgatar apenas os seus cidadãos e a inoperância política e militar da ONU. Esta última é a mais bem resolvida, porque personificada pelo coronel Oliver (Nick Nolte), um canadense que comanda uma força de míseros 300 capacetes azuis: em seu rosto estão estampados a impotência e o fracasso, e tudo o que pode fazer se resume a puro voluntarismo.
Claro, nem tudo se resolve bem. O filme de denúncia cobra seu preço. No final, o que temos é um amontoado de culpas a distribuir: a herança da colonização, a corrupção endêmica, o racismo, a pobreza, a indiferença do mundo. Mas às vezes basta uma sequência bem filmada para lhe devolver o estatuto de grande cinema. Em Hotel Ruanda, ela impressiona pela sua crueza, quando, em meio a um denso nevoeiro, Rusesabagina avista dezenas de corpos espalhados pela estrada. A imagem de um pesadelo que, por um instante, dispensa todo o discurso gasto.
BRAVO!, agosto de 2005
© Almir de Freitas