O musical Chicago mostra como o cinema ainda está longe de reinventar um gênero que já teve seus dias de glória
Existem gêneros no cinema que, por mais populares que tenham sido um dia, não conseguem sobreviver ao tempo. No topo dessa lista estão, entre outros, os musicais, que hoje não passam de uma pálida sombra das produções das décadas de 40 e 50, especialmente aquelas que contavam com músicas de compositores como George Gershwin e Cole Porter e dançarinos/ atores como (só para citar o casal clássico) Fred Astaire e Ginger Rogers. São personagens de um mundo de “astros e estrelas” que ainda hoje está cravado no imaginário coletivo – um fenômeno raro mesmo em Hollywood. É até natural, portanto, que sobre seus sucessores recaia uma espécie de maldição, oprimidos por uma época memorável que não volta mais.
Chicago (2002), de Rob Marshal, que agora estreia no Brasil, está longe de ser exceção. Ao contrário, confirma até com certo refinamento essa triste regra. Baseado no espetáculo homônimo que Bob Fosse encenou nos anos 70 na Broadway, acompanha a trajetória de Roxie Hart (Renée Zellweger), uma aspirante ao estrelato que, no final dos anos 20, mata a tiros o amante pilantra, que lhe prometia uma passagem para o mundo do show business do jazz. Ironicamente, ela se torna uma celebridade na cadeia, com a ajuda do advogado brilhante e inescrupuloso (mais um…) Billy Flynn (Richard Gere) e apesar da oposição da rival Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones).
Não importa tanto que o argumento e a moral aí embutida sejam um tanto simplórios – os grandes musicais do passado também não se propunham a oferecer mais que bom entretenimento. Grande parte do seu sucesso se devia mesmo a uma combinação única, que aliava o talento dos seus criadores com uma ideia positiva que a América tinha de si mesma na época. O resultado foram produções leves, ingênuas, que hoje assistimos com alguma condescendência divertida. Mas era daí que surgia, e se perpetua, sua magia.
Chicago, é verdade, não deixa de preencher tecnicamente (malgrado as detestáveis dublagens nas canções) os requisitos mínimos para uma produção desse tipo nos dias de hoje: uma certa competência na direção, algum fausto na cenografia e nas coreografias e até boas atuações, principalmente de Renée Zellweger. Entretanto, há sempre algo que soa oco, artificial. E não se trata apenas de nostalgia – embora seja absurda qualquer similaridade entre Richard Gere e, digamos, Frank Sinatra. O fatal em Chicago é que o filme não se ressente apenas daquilo que não pode ter, não apenas porque tente reproduzir uma fórmula esgotada, mas sobretudo porque, mantendo-a, tenta disfarçá-la com uma roupagem supostamente nova. É uma farsa que salta aos olhos.
Ao procurar ser mais “realista”, Chicago só consegue dizer “não” ao antigo, mas é incapaz de inventar outra “magia”. Agora é a vez da América masoquista, que faz questão de cutucar suas feridas. Nas manobras de Roxie, Velma e Flynn, aponta-se com insistência a perversidade do “sistema”, em que a sociedade, corrompida, corrompe o indivíduo, num círculo vicioso sem fim. Assim, a Justiça não passa de um circo, a imprensa se deixa manipular com um estalar de dedos e o público, no fim, não passa de um punhado de patetas.
Não se pede, naturalmente, uma simples volta aos enredos leves, e Lars von Trier mostrou o mal-estar que se pode produzir num musical ousado como Dançando no Escuro (2000) – filme no qual, aliás, Rob Marshal nitidamente foi buscar inspiração para algumas cenas. A questão é que Chicago, com seu denuncismo vazio, apoiado no senso comum, é até mais mistificatório que as produções do passado, sem o vigor que na época apresentaram: velhas, foram novas um dia. Já Chicago, por mais qualidades técnicas que possa reunir, será apenas mais um musical. Velho, sem nunca ter sido novo.
BRAVO!, março de 2003
© Almir de Freitas