Apocalypse Now explora os limites da compreensão humana – e por isso é o melhor filme já feito sobre o Vietnã
Dos transtornos causados pela guerrilha filipina até o infarto de Martin Sheen durante as filmagens, construiu-se toda uma mitologia – alimentada pelo próprio Francis Ford Coppola, diga-se – em torno de Apocalypse Now que se mistura com a da própria narrativa da viagem do personagem Willard selva adentro atrás de Kurtz. E nem precisava: a versão do diretor para O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, é, de longe, o melhor filme já feito sobre a Guerra do Vietnã. Porque, diferente de seus sucessores no tema, não se apoia apenas no confronto moral (Platoon, de Oliver Stone), no suposto relato histórico (Nascido para Matar, de Stanley Kubrick) ou nas marcas deixadas pela guerra (O Franco Atirador, de Michael Cimino), mas vai mais fundo, explorando os limites da compreensão do homem diante de uma cultura cujos códigos lhe são estranhos.
Volta e meia – e nem sempre com a devida competência – o cinema flerta com essa idéia, que sempre foi um prato cheio para os estudos semióticos e de linguística. Um dos melhores deles é A Conquista da América: A Questão do Outro, de Tzvetan Todorov, que tenta explicar como uma civilização inteira (os astecas), desorientada pelos signos de sua cultura diante dos emitidos pelos espanhóis, foi presa fácil para uns poucos soldados. Já em Apocalypse Now, o que interessa não são apenas as razões da derrota norte-americana, mas fundamentalmente essa incompatibilidade entre “aparelhos simbólicos” distintos, abrindo espaço para a leitura de que os signos, esvaziados de significado, levam à insanidade: a lógica do “massacre” – que aproxima os conquistadores espanhóis aos norte-americanos – não se ajusta à do “sacrifício”, e, em Apocalypse Now, é esta última que triunfa: cada um a sua maneira, Kurtz e Willard experimentam, impotentes com seus códigos diante da selva, o horror que se esconde rio acima.
Diante disso, é perfeitamente adequado abusar de cenas para mostrar essa distância insuperável entre o mundo de Kurtz, que recita o poema Os Homens Ocos, de T.S. Eliot (cuja epígrafe, aliás, é um trecho de O Coração das Trevas), em meio aos enforcados e às cabeças expostas nas escadarias das ruínas de uma civilização milenar, e o criado por homens também presos por signos desarticulados e deslocados: o esqui ao som de Satisfaction, a vaca içada em meio às chamas de uma aldeia, as playmates, o inferno sem razão e sem sentido da ponte Do-Lung, última fronteira a ser rompida, e finalmente a clássica – porque sintética – cena em que a formação de uma “cavalaria” de helicópteros sobre as ondas dispara contra uma aldeia de civis ao som de A Cavalgada das Valquírias, de Wagner. Depois, surf e napalm.
No fim, com ou sem os 53 minutos adicionais, o que se constata é que Apocalypse Now não é apenas um filme sobre o Vietnã, mesmo sendo o melhor deles. É muito mais, pois ao mesmo tempo em que aproveita o cenário da guerra, independe dele, indo, longe das selvas do Congo de Conrad ou do Camboja de Coppola, ao ponto em que o homem sucumbe – sem linguagem, sem cultura, imerso na pura barbárie. É quando “todas as crianças estão loucas”, como diz Jim Morrison na música que abre e encerra o filme, chamada, simples e apropriadamente, The End.
BRAVO!, julho de 2001
© Almir de Freitas