Em O Passado, Hector Babenco transforma um romance caudaloso de Alan Pauls num filme de poucos diálogos e intenções contidas
Adaptar livros para o cinema é, quase sempre, uma tarefa de risco. Hector Babenco sabe bem disso. O cineasta, que se consagrou mundialmente em 1985 com O Beijo da Mulher Aranha, baseado no livro de Manuel Puig, conheceu os reveses, de crítica ou de bilheteria, nos ótimos Ironweed (1987) e Brincando nos Campos do Senhor (1991), também feitos a partir de obras literárias. Em todos os casos, contudo, é inegável a sua habilidade de reproduzir, em uma nova linguagem, a força de suas matrizes literárias.
O Passado, seu novo filme, corre os mesmos riscos. Adaptado do mais recente livro do argentino Alan Pauls, o longa enfrenta com sucesso o desafio de levar para as telas o essencial de quase 500 páginas de uma prosa caudalosa, minuciosa em detalhes – isto é, puramente literária. A história é a de Rímini, um tradutor que se separa sem motivo aparente de Sofía, mulher com quem vivera 12 anos, desde a adolescência, num romance “que havia durado um pouco demais”, segundo ele.
Sua história é a da luta contra o passado, ou melhor, a do passado que perdura no presente como um fantasma, como força paralisante, impedindo qualquer possibilidade de libertação. O tema não é estranho a Babenco. No autobiográfico Coração Iluminado (1996), ele já havia explorado de maneira contundente as marcas em sua própria história. A dificuldade, na adaptação de O Passado, é a de mostrar a batalha interior de Rímini contra as investidas pontuais (mas precisas) de Sofía contra o esquecimento.
A solução encontrada por Babenco e por Marta Góes, que também assina o roteiro, foi a de transformar a profusão de palavras do narrador onisciente do romance em silêncio. Interpretado por Gael García Bernal, Rímini quase não fala. Sua luta é travada interiormente, sem palavras. Isso exigiu uma narrativa inteiramente nova, em um encadeamento de fatos, em imagens, que só poderia ser obtido descartada a facilidade de uma narração em off. De pura literatura, Babenco fez puro cinema.
O silêncio de Rímini, além de tudo, se ajusta perfeitamente à concepção original do personagem: no fundo, ele não passa de um objeto de manipulação. Em que pese seus esforços interiores (chega mesmo a esquecer línguas que aprendera, numa tentativa inconsciente de matar o passado), é um homem essencialmente passivo diante dos fatos externos.
Entre o público, os homens podem não gostar dessa caracterização; as mulheres, por seu turno, podem não gostar da leitura que se pode fazer delas a partir de Sofía. Os que leram o livro de Pauls podem não gostar ainda das naturais (ainda que poucas e perfeitamente compreensíveis) mudanças promovidas no roteiro do filme. No fundo, são os mesmos riscos de sempre. Nada que impeça Babenco de seguir sendo, à sua maneira, um dos mestres da adaptação de textos literários na atualidade.
BRAVO!, novembro de 2007
© Almir de Freitas