Em A Estranha Família de Igby, o estreante Burr Steers mostra um mundo em que não há espaço para a tragédia ou para a comédia
Caçadores de empatias – aqueles que só acham que a “identificação” do público com uma personagem pode fazer o cinema funcionar – assoviaram e saíram de fininho diante de A Estranha Família de Igby. Lançado no início do mês passado, o filme de estreia de Burr Steers foi recebido com indiferença ou alguma hostilidade blasé por quem se condicionou a pensar segundo as regras que regem as cinematografias que se apresentam como retratos das misérias do povo, dos dramas da classe média ou das malvadezas dos poderosos. Acontece que Igby, na sua singularidade, é bem mais que isso. E um pouco demais para os que funcionam no automático.
Igby Slocumb (Kieran Culkin), um garoto de 17 anos, parece ser mais um representante da clássica ovelha desgarrada de um clã reacionário, hipócrita e estupidamente rico. Expulso de todos “os colégios protestantes da Costa Leste” e foragido da Escola Militar, Igby não suporta a mãe fria e movida a bolinhas, Mimi (Susan Sarandon), e o irmão exemplar, Oliver, a quem chama de “fascista” ou “jovem republicano” – ali tanto faz. Só alimenta afeto pelo pai, Jason (Bill Pullman), encerrado num hospício, fraturado pela esquizofrenia. Desaparece, portanto, e vai conhecer o mundo da gente comum, longe (mas nem tanto) da ilha em que foi criado.
A óbvia similaridade desse argumento com tantos outros filmes, contudo, é diluída no roteiro e, sobretudo, na condução de algumas cenas de extraordinária força, que só podem existir porque a “estranha” família de Igby nada tem a ver com os hábitos de uma burguesia rastaquera que a maioria dos diretores adora esbofetear para saciar os rancores e ressentimentos da plateia. O mundo de Steers – onde, aliás, ele próprio foi criado – é de uma reduzidíssima aristocracia, com universo mental virtualmente incompreensível aos meros mortais.
No filme, o protótipo dessa aristocracia norte-americana, D.H. Banes (Jeff Goldblum), padrinho de Igby, vive a sua vida, a sua privilegiada vida, com uma naturalidade espantosa diante de tudo. Em uma cena, flagrado pelo afilhado (que não poderia estar ali) com as calças arriadas no loft de sua amante, D.H. sorri, ajeita-se sem pressa, comenta a aparência “pálida” do garoto e lhe dá alguns dólares para comprar “alguma carne vermelha”. Em outra, numa mesa de restaurante, olha para a amante com quem silenciosamente rompeu, levanta-se e, sem nenhuma palavra, pega seu casaco e vai embora. Ponto.
Não são simples gracejos. O que A Estranha Família de Igby demonstra de modo impecável é que ali não há lugar nem para a tragédia nem para a comédia: é o mundo dos bem-nascidos e com-herança, de quem sabe – porque é verdade – que nada, absolutamente nada, pode abalar o curso dos seus destinos. De certa forma, são anônimos tranquilos numa sociedade que se digladia cotidianamente, ou pela sobrevivência, ou pelo poder. Por mais que queira, nem Igby foge a essa lógica: sua revolta só pode ser entendida na sua inteireza quando se sabe que nem ele está preso aos dramas que oprimem a patuléia. Movimenta-se na contramão, mas não tem como escapar de sua origem. E sabe disso.
Essa impassibilidade, descrita por Igby como “frieza” quando o irmão lhe rouba a namorada judia, se aplica inclusive à morte. Desenganada pelo câncer, Mimi convoca os dois filhos para lhe aplicar uma bizarra eutanásia. Tudo limpo, tudo quase tranquilo – a não ser por Igby, que, em dois momentos luminosos, se dá conta do absurdo singular que o rodeia, que talvez só possa ser compreendido, afinal, pelo pai em sua alienação. Mas é só. De resto, a vida dessa aristocracia segue seu curso, longe dos olhos dos mortais.
BRAVO!, novembro de 2007
© Almir de Freitas