Fica para trás a imagem do “poetinha”, mostrando um autor em que a paixão se misturava com tumultos interiores
Diminutivos servem para identificar, como se sabe, coisas de pequeno porte ou, por extensão, coisas pelas quais temos carinho. Em certo sentido, as duas formas se conjugam no equívoco que fez com que Vinicius de Moraes passasse à história da literatura brasileira como “poetinha”. Quase como a dizer: gostamos muito dele, de seus versos sobre o amor e a paixão – mas poetas sérios, “poetões” mesmo, são os outros. Para certa crítica acadêmica, o existencialismo prosaico de Carlos Drummond de Andrade, o lirismo de Manuel Bandeira e os versos duros da poesia engajada de João Cabral de Melo Neto encerram tudo o que de melhor e mais diverso o modernismo poderia produzir. A verdade, contudo, é que o cânone modernista não tinha como enquadrar a poesia de Vinicius, construída numa trajetória absolutamente singular, que foi das formas mais tradicionais da poesia ao trabalho como letrista da bossa nova.
As reedições da obra de Vinicius, publicadas pela Companhia das Letras numa coleção coordenada pelo também poeta Eucanaã Ferraz, mostram que essas antigas amarras acadêmicas ficaram para trás. Acompanhadas de novos textos críticos, as edições revelam um poeta em que a intensidade da paixão se mesclava com tumultos interiores, características que refletiam uma personalidade desde sempre atormentada e sujeita a frequentes períodos de depressão. No conjunto da vida e da obra, revelam-se os matizes de um poeta que estava longe da imagem limitada atribuída a ele no imaginário da literatura brasileira — a de um homem com um copo de uísque na mão e um olho nas mulheres bonitas que passam no calçadão de um Rio de Janeiro edênico. Este, o tal “poetinha”.
Poemas Esparsos, o mais recente volume da coleção, apresenta, em textos inéditos em livro, outros elementos desse Vinicius distante dos temas solares. Escritos entre os anos 30 e 70, os poemas compreendem todas as “fases” do poeta — desde a da juventude, em que ele era influenciado por um simbolismo de extração européia, marcada por um catolicismo atormentado, até a posterior, em que a sua poesia ganhou mais leveza, tornou-se mais “modernista”. Se as diferenças entre as duas fases são evidentes e inegáveis, a divisão rígida entre ambas acabou ocultando a persistência dos elementos sombrios da primeira na segunda, num poeta que, além de tudo, acabou sendo eclipsado pelo letrista. Trabalho, aliás, que não pode ser confundido com sua obra poética — outro equívoco comum.
Nem todos os textos do livro são inéditos, mas seguem sendo contundentes em revelar a obra de poeta mais inteiro, tão complexo quanto os elementos simbólicos e valores morais envolvidos — sexo e morte, culpa e prazer — na metamorfose de “poeta maldito” em “libertino”. Sem esses elementos, não se pode compreender a profundidade da paixão pela qual o poeta foi reconhecido. Elementos que podem explicar muito, por exemplo, os versos de Soneto de Fidelidade (1946), talvez os mais famosos de Vinicius: “Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama/ Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.
BRAVO!, janeiro de 2009
© Almir de Freitas