Há 50 anos morria Graciliano Ramos, o escritor que fez da economia da linguagem a arma contra um mundo intolerável
Há 50 anos, no dia 20 de março de 1953, morria Graciliano Ramos, aquele que é, certamente, o melhor romancista surgido no Modernismo brasileiro. Junto com escritores que os manuais convencionam chamar de Geração de 30, e que inclui nomes como Jorge Amado e Rachel de Queiroz, sua obra – que começa a ser relançada neste mês pela editora Record – é usada comumente para ilustrar a literatura de cunho regionalista. Sutilezas, contudo, nunca foram o forte das convenções.
É verdade que existe uma relação de parentesco entre esses escritores no que se refere à temática e ao ideário marxista, típico da época, que ajudou a moldar (não sem os inevitáveis equívocos) o universo de uma literatura engajada à moda brasileira. Mas há sempre uma deformação que, com o tempo e a inércia, alija o autor e a obra no que eles têm de singular. No caso de Graciliano, isso ocorreu de modo duplamente perverso, tanto no quesito estético quanto político. Em primeiro lugar porque sua prosa, substantiva e apegada ao essencial, é um modelo de narrativa econômica em toda a literatura mundial – e não deixa de ser irônico que seus romances tenham sido eclipsados durante tanto tempo pela torrente de palavras de Guimarães Rosa, apontado como o herdeiro-renovador desse regionalismo difuso.
Em segundo lugar, e por consequência, produziu uma obra que resistiu às facilidades do populismo e do proselitismo político que nunca deixaram de assombrar a criação artística. Nascido no sertão de Alagoas em 1892, Graciliano respondeu à dureza da vida na mesma moeda: com força, mas nunca com ressentimento; com empenho, mas sem discurso vitimista. Militante convicto do Partido Comunista, recusou-se, contudo, a obedecer as fórmulas baratas do realismo socialista. Preferiu seguir seu próprio caminho: engajou-se, como tantos de seus contemporâneos, mas manteve a distância suficiente para preservar sua independência artística, fazendo da economia da linguagem o instrumento do seu materialismo; das falhas e angústias do homem, a sua dialética.
Vidas Secas, por exemplo, um romance nitidamente de crítica social, fica longe do panfleto discursivo. Ao contrário, é na quase ausência de linguagem da família de miseráveis que erra pelo sertão que se escancara o embrutecimento do ser humano: destituído do atributo humano por excelência, o protagonista Fabiano se equipara desconfortavelmente com a cadela Baleia – uma criação inesquecível. A paisagem não: vitoriosa sobre a civilização, ela fala, é contundente na sua inclemência. Seus personagens alegóricos – o patrão e o Estado – são meros coadjuvantes de um mundo maior, mais complexo e mais desafiador. Coisa que o realismo socialista, na sua demagogia propagandística e no seu autoritarismo stalinista, naturalmente, nunca se preocupou em perscrutar.
Graciliano não deixou herdeiros. Não houve quem pudesse chegar perto dessa grandeza. É pena. No mínimo, teria ajudado a combater a reprodução dos primeiros equívocos envolvendo a relação entre arte, inovação e engajamento político. Hoje, 50 anos após sua morte, a ameaça demagógica persiste, ainda que em outra embalagem. É um legado pesado que o século passado deixou para este.
BRAVO!, março de 2003
© Almir de Freitas