Dramaturgo irlandês fez da estranheza a matéria-prima de obra em que a liberdade caminhava junto com a responsabilidade
No século 20, não faltaram pensadores que, ao longo de escaldadas vidas, abandonaram a militância de esquerda para assumir posições mais moderadas ou, em casos literalmente extremos, francamente reacionárias. Esse tipo de metamorfose, nem boa nem má em si, tornou-se um verdadeiro clássico de biografias em uma época conturbada com suas idas e vindas, cheia de incertezas. Entretanto, houve quem, por uma razão ou por outra – ou pela soma delas –, fugiu a esse padrão. Um dos casos mais exemplares é o do dramaturgo, escritor e polemista irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), que, mais que destoar do comum, fez mesmo do atípico e da estranheza a matéria-prima de uma liberdade que não se dissociava da responsabilidade.
Essa história – que, afinal, é a de uma tensão permanente – começa a se delinear já na sua origem. Nascido em Dublin, Bernard Shaw foi o terceiro filho de George Carr Shaw e Lucinda Elizabeth Gurly: ele, inglês, protestante e de família que almejava a velha aristocracia; ela, irlandesa, católica e de linhagem decadente. A união – se não era explosiva no sentido mais corriqueiro da palavra – não era lá de fato muito ortodoxa e é indicativa, pelos caminhos perigosos e difusos do indivíduo, das contradições e das complexidades de Grã-Bretanha da época.
Verdade é que não se tratava, como se diria hoje, de um “casamento feliz”. Entregue às criadas, Bernard Shaw cresceu em meio à indiferença dos pais e, a certa altura, não sabia muito o que fazer da vida. Com 20 anos, arrumou as malas e mudou-se para Londres, onde exerceu – não a contragosto – uma série de empregos burocráticos. Tentava, então, sem muito sucesso, a carreira literária. A grande virada só viria mais tarde, quando trocou a prosa pela dramaturgia – o que lhe valeu a consagração mundial e o Prêmio Nobel de Literatura de 1926, com peças como O Discípulo do Diabo (1897), Homem e Super-Homem (1904) e Santa Joana (1923).
Foi nesse (longo) meio tempo que abraçou, à sua maneira, o marxismo. Tinha quase 30 anos quando, em 1884, conheceu os intelectuais Sydney e Beatrice Webb, com os quais fundou a Sociedade Fabiana, que defendia a adoção gradual do socialismo, dentro das regras do capitalismo e da democracia. Seu nome, aliás, foi inspirado no general romano Fábio Máximo, bem-sucedido nas suas estratégias protelatórias de batalha. Desnecessário dizer que o jovem dramaturgo e seu grupo conseguiram desagradar tanto a comunistas quanto a conservadores. Mas Shaw, dono de um humor ácido que não poupava ninguém, tinha gosto pelo conflito. Em Pigmalião (1913), sua mais famosa peça, é ele de fato quem diz: “Teria sido o mundo criado se o seu criador tivesse medo de fazer confusão? Criar vida quer dizer criar confusão”.
Contudo, mais que uma graça ou uma piada, a Sociedade Fabiana era uma associação combativa, e a ela Shaw dedicou boa parte de sua (longa) vida, apontando as mazelas da burguesia, a qual ridicularizava implacavelmente. Que ela tenha sido, como verdadeiramente o foi, o núcleo inicial do Partido Trabalhista Inglês é a prova de sua seriedade – embora certamente Bernard Shaw tivesse urticárias ao ver que ela tenha mudado a ponto de ter como líder um tipo como
Primeira Leitura, janeiro de 2003
© Almir de Freitas