José Saramago conta como a criação de A Viagem do Elefante o ajudou a superar uma doença grave
Na dedicatória de A Viagem do Elefante, o sr. anotou: “A Pilar, que não deixou que eu morresse”. Como foi esse período difícil, em que o sr. enfrentou a doença que o fez até temer não concluir o livro?
Foi difícil, muito difícil. Não concluir o livro seria mau, mas pior seria morrer. Portanto, tratava-se de salvar a vida, embora as esperanças fossem quase nulas. Felizmente tive a sorte de encontrar no hospital de Lanzarote uma excelente equipe médica, pessoas ao mesmo tempo de uma grande qualidade humana. E havia Pilar com sua coragem, a sua determinação, a sua vontade de ferro. Como eu disse algumas vezes, ela agarrou-me pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço.
De alguma maneira, esse período difícil se refletiu em A Viagem do Elefante? O livro mostra que o sr. não perdeu o bom humor.
Digamos que se refletiu ao revés. Em lugar do tom melancólico, mesmo desesperado, que seria de prever numa situação em que tudo parecia apontar a um desenlace fatal, foi como se a mente se me tivesse aberto mais. Reduzido a uma sombra de mim mesmo, fui capaz de manter diálogos vivíssimos com os médicos. Tinha relativizado a minha situação, esquecido de alguma maneira o corpo, uma vez que não podia fazer nada por ele, e dei largas, na linguagem, à imaginação que me restava.
No livro persistem, ainda, as farpas direcionadas ao Estado e à Igreja, que são características de sua obra. A Igreja Católica não trouxe nada de bom à humanidade?
As religiões, todas elas, nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Pelo contrário. E o catolicismo, neste particular, deu os piores exemplos ao mundo, basta que recordemos as torturas e as fogueiras da inquisição, essa associação criminosa cujos herdeiros ainda não pediram perdão às suas vítimas. Os crimes que desde sempre se cometeram em nome dos deuses são, como se dizia dantes, de bradar ao céu… Mas, como já deveríamos saber, o céu é surdo de nascença.
O sr. define o livro, de pouco mais de 250 páginas, como “conto”. Gostaria que o sr. explicasse melhor essa definição que o sr. reivindica para essa narrativa.
São exatamente 258. Quando se anunciou o próximo aparecimento do livro, toda a gente, sem nada saber dele, começou a chamar-lhe romance. Ora, A Viagem do Elefante não é um romance, faltam-lhe os ingredientes que nos habituamos a encontrar no gênero. Por exemplo, não há história de amor. E também não há uma personagem feminina importante, daquelas a que os leitores dos meus livros se habituaram. Quanto a mim, já desisti de classificações. Entenda cada um o livro como melhor lhe parecer e chame-lhe o que quiser.
Em obras recentes, o sr. abordou tanto as suas memórias de infância, em As Pequenas Memórias, quanto a morte, na ficção As Intermitências da Morte. O sr. considera que esses são temas de que não podemos escapar quando envelhecemos?
Mais a recordação dos primeiros anos que a proximidade da morte. Em todo o caso, se repararmos bem, As Intermitências não é sobre a morte, mas sobre a necessidade dela para que possamos viver. E que desejar viver eternamente, esse antigo sonho da espécie humana, significaria ser velho eternamente, velho cada vez mais velho, uma vez que não se pode parar o tempo.
Dez anos se passaram desde o Prêmio Nobel de Literatura. O que mudou em sua rotina de lá para cá — se é que mudou?
Os compromissos, as intervenções multiplicaram-se, mas, no essencial, nada mudou. O Nobel tornou-me mais visível e mais audível, criou-me essa responsabilidade. Fiz e continuo a fazer o possível para estar à altura.
Algo mudou para a literatura de língua portuguesa, de alguma maneira o Nobel atraiu atenções para essa língua tão pouco falada no mundo?
Duzentos milhões de pessoas não são pouca gente. Com o Brasil como barco almirante, esta esquadra tem muito que navegar. Assim haja vontade política e meios materiais, isto é, dinheiro, porque sem ele não se poderá ir longe. Sobre a outra parte da pergunta, há que reconhecer que o interesse da edição internacional pelos autores portugueses cresceu muito a partir da atribuição do Nobel.
Já se falou que sua prosa lembra, pelo ritmo compassado, uma narrativa oral, em que os fatos e as falas se entrelaçam. O sr. concorda com esta ideia? Em caso positivo, seria esta característica que define a “voz” que o sr. encontrou para escrever?
Os sinais de vírgula e ponto, únicos que uso nas minhas ficções, são, como prefiro dizer, sinais de pausa, um mais breve, outro mais longo. Mas não é daí que vem a tal “voz”. A “voz” vem do tom narrativo, que é muito mais que a simples oralidade, vem da proximidade com o leitor que é talvez a máxima preocupação do narrador, vem do uso de cadências e ritmos diversificados, todos tendentes a suscitar uma atmosfera especial no ato de ler.
Como tem sido a experiência do sr. com a internet, com o blog? Tem valido a pena, estabeleceu-se a comunicação com os leitores que um blog supostamente traz?
Creio que tem sido positiva. E com um aspecto curioso que mostra até que ponto podemos ser contraditórios. Inúmeras vezes convidado a colaborar na imprensa, sempre me tenho negado, e agora eis-me a escrever grátis com a maior regularidade naquilo a que já chamei a página infinita de internet…
Foi muito marcante a sua reação emocionada à adaptação para o cinema de Fernando Meirelles de Ensaio sobre a Cegueira. Qual seria a grande qualidade que o sr. destacaria no filme?
O escrúpulo de Fernando em respeitar o espírito do romance sobre todas as coisas. Tudo no filme está posto ao serviço dessa preocupação.
O que o sr. tem achado da recepção do filme no mundo?
Creio que ainda é cedo para falar. Até agora tem-me parecido muito favorável, não obstante as incompreensões de certa crítica que diz que o filme é demasiado violento. Pelos visto esses críticos não costumam ver televisão.
O sr. acha que algum outro livro do sr. renderia uma adaptação tão boa quanto Ensaio sobre a Cegueira? Memorial do Convento, talvez?
Memorial do Convento certamente, mas há outros como, por exemplo, O Homem Duplicado.
O sr. acha que o mundo — ou o governo de Portugal, pelo menos — estaria mais preparado hoje para O Evangelho Segundo Jesus Cristo?
Com o atual governo seria impossível que o fato se repetisse. Mas como é perigoso apostar no futuro (imaginemos que a direita volte ao poder) estejamos atentos.
Faz alguns anos, em uma entrevista ao jornal El País, o sr. rompeu com o regime cubano. Mas ainda se definiu como um “comunista libertário”. No entender do sr., qual futuro pode haver para o socialismo no mundo?
Em minha opinião, Marx nunca teve tanta razão como hoje. O problema está na desorganização estrutural das esquerdas atuais, na sua incapacidade para criar modelos originais. A social-democracia, que é, como devíamos ter a obrigação de não esquecer, a cara amável do capitalismo mais duro, logrou a proeza de minar, às vezes pela corrupção, as bases sociais dos partidos de esquerda e dos sindicatos. Enquanto não tivermos uma alternativa política capaz de travar batalha em todos os níveis da sociedade, não será possível desalojar o capitalismo do poder.
O que o sr. acha da eventual eleição de Barack Obama nos Estados Unidos?
As expectativas são grandes. Esperemos que a nova realidade (na hipótese previsível do triunfo) se manifeste. Já tivemos muitas decepções.
O sr. sempre fez questão de que as edições de seus livros nos demais países de língua portuguesa conservassem a grafia de Portugal. O que o sr. acha da reforma ortográfica que começará a vigorar no ano que vem, na tentativa de uniformizar as grafias de todos esses países?
Oxalá tenha terminado o que já parecia um interminável folhetim, reforma sim, reforma não, reforma talvez. Por muito que desagrade a um número considerável de pessoas responsáveis, a reforma era necessária. Não escreveremos pior com ela, e isso é o que importa.
A epígrafe de A Viagem do Elefante é: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Este lugar é o mesmo para todos nós?
Sim e chama-se morte.
BRAVO!, outubro de 2008
© Almir de Freitas