Lygia Fagundes Telles fala da mistura de fantasia e memória na sua obra e em seu novo livro, Conspiração de Nuvens
No apartamento na rua da Consolação, em São Paulo, Lygia Fagundes Telles manda passar um café e trazer biscoitos. Em uma das poltronas da sala, uma almofada em forma de gato substitui os que não tem mais — Lygia teve vários desses animais de estimação ao longo da vida, e eles são presença recorrente também em sua literatura. Em quase uma hora de entrevista a BRAVO!, ela conta que mudou para o atual endereço no bairro dos Jardins em 1982, pois já não gostava mais do apartamento da rua Pernambuco, em Higienópolis — foi lá que, em 1977, morreu o escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, seu segundo marido. Mas logo lembra com carinho do modesto apartamento na rua Sabará, número 400, “onde vivemos eu, Paulo, os gatos e meu filho [Goffredo Telles Neto], que foi embora há um ano, já”.
Conspiração de Nuvens, seu novo livro, é todo ele fruto desse exercício de fazer literatura pelo filtro da memória. São textos curtos, em sua maioria claramente biográficos, mas Lygia avisa que nenhum deles está imune à fantasia. Ela já havia feito isso em Invenção e Memória, publicado em 2000, em que a ficção se alimenta da realidade – seja das pequenas coisas de sua vida, seja daquilo que o mundo apresenta como desafio para a compreensão do ser humano.
Integrante da Academia Brasileira de Letras, premiada e traduzida para vários idiomas, Lygia faz tudo isso sem nenhuma máscara de solenidade. Bem-humorada, imita Clarice Lispector (“Lygia, eu tenho a língua prrresa”) e lembra de uma vez em que a autora de Perto do Coração Selvagem lhe disse que escritor no Brasil, ainda por cima mulher, tinha de sair sério em fotografia. “E ela sempre saía toda séria”, ri. No meio da entrevista, Lygia acende um cigarro. “Olha o que eu faço”, diz, mostrando como cobre com esparadrapo os anúncios do Ministério da Saúde contra o tabagismo. “Por que não se põe essas coisas horrorosas em bebidas alcoólicas?”, pergunta, para em seguida oferecer um vinho do Porto. “Falando em bebida…”, ri.
Num dos textos de Conspiração de Nuvens, a sra. cita Santo Agostinho: “A casa da alma é a memória”. Foi com esse pensamento que a sra. escreveu este livro?
Realmente, eu tenho nesse livro coisas da minha vida. Mas é muito difícil separar o que aconteceu do que poderia ter acontecido, aí entra a fantasia, a invenção. Sem querer, ao contar memórias, se inventa. É por isso que eu jamais escreverei a minha autobiografia, e também não gostaria que ninguém escrevesse. Porque eu iria contar coisas que não aconteceram, que eu pensei que tivessem acontecido, que eu queria que tivessem acontecido. Esse é um livro de memórias, mas às vezes a fantasia entra. Eu tento definir o ser humano e não definir nada. Nesse livro, e na minha vida, o ser humano é indefinível, inacessível e incontrolável. Então eu preciso inventar, é essa a alegria do escritor. As personagens têm vida própria, elas também escapam, são incontroláveis.
Isso vale para os personagens reais que estão no passado?
Também. Quando eu escrevo, eu me pergunto se estou inventando ou não. Mas não tem importância se eu estiver.
Esse mecanismo também se aplica quando a senhora escreve ficção?
Sim. Eu me lembro de um curso que fiz uma vez com o Antonio Candido, grande amigo meu e do Paulo Emílio, na Faculdade Maria Antônia. Ele dizia que qualquer texto literário se compõe de três elementos: a ideia, as personagens e o enredo. Mesmo que a ordem não seja esta. Em muitos textos meus, as personagens vêm primeiro. Helga, um conto que poucas pessoas lembram, mas de que eu gosto muito, tem um fundo verdadeiro. Vem de uma notícia que li de um brasileiro que tinha ido para a Alemanha servir na juventude hitlerista. Em Düsseldorf, ele se casou com uma jovem alemã que tinha perna mecânica e, na noite de núpcias, roubou a perna dela para vender e desapareceu. O resto, as tentativas que ele faz para entender a coisa horrorosa que tinha feito, eu imaginei.
A criação de Venha Ver o Pôr-do-Sol, um conto bem mais conhecido, foi parecida, não?
Foi, mas nesse eu tive a ideia primeiro. O Carlos Drummond de Andrade gostava muito dele. Eu morava no Rio de Janeiro naquela época, nos anos 50, e o Drummond me disse um dia que havia uma notícia no Correio da Manhã que ia me interessar. Era a história de um casal, de porre, que entrou num cemitério pobre. No passeio, ela sumiu. O homem ficou nervoso, procurou, foi embora, e só mais tarde o coveiro encontrou a mulher caída dentro de uma sepultura, gritando por socorro. Foi aí que eu tive a ideia: um cemitério seria o local perfeito para cometer o crime perfeito.
Esse processo de criação é o mesmo para os romances? Ciranda de Pedra, por exemplo?
Ciranda de Pedra tem muito a ver com a minha história. Eu tive uma juventude muito tempestuosa. Eu era uma estudante muito pobre, meu pai havia se separado de minha mãe, eu me sentia muito rejeitada. A personagem Virgínia nasceu desse sentimento da rejeição. Esse livro é de 1954, tinha uma lésbica nesse romance, uma coisa que ninguém falava naquela época. O preconceito era terrível. Era a minha vontade de quebrar com os preconceitos, de quebrar com a tradição, das coisas todas arrumadinhas, limpas, sem poeira.
Essa parece ser uma característica de seus romances, sempre com personagens muito fortes. É o caso de Ana Clara, de As Meninas?
Parece que esse é meu romance mais importante, o Paulo Emílio gostava demais dele. Lá também há um contrabando da realidade para a ficção. O panfleto político que a personagem subversiva reproduz para uma freira existiu de verdade, foi o Paulo Emílio quem me mostrou. Ele disse: olha, põe esse panfleto, que eu acho importante. Eu achei perfeito. Eram os anos de chumbo. Como eu disse no texto que está em Conspiração de Nuvens, sorte que na época o censor deve ter achado o livro muito chato e não foi adiante. Se tivesse chegado na página do panfleto, o romance teria sido censurado.
A sra. diz no livro que o leitor está em extinção. O escritor não?
Sim, o leitor está em extinção, o escritor, não. Há um excesso de escritores por aí, nunca vi tanto escritor, nunca vi tanta editora. Em geral todos muito ricos, os editores. O escritor não, para ele zero, nada. Ao mesmo tempo, há tantos escritores esquecidos hoje. Existe um mar morto da literatura. Eles estão lá no fundo, embaixo dos polvos, no meio daqueles antigos tesouros dos navios que afundaram e que nunca mais foram recuperados.
BRAVO!, setembro de 2007
© Almir de Freitas