Escritor, músico e dramaturgo, Benjamin Zephaniah fala de racismo, pobreza e de seu novo livro, Gangsta Rap
Se fosse para evocar o senso comum, seria o caso de dizer que o inglês de origem jamaicana Benjamin Zephaniah é um artista múltiplo. Romancista, poeta, músico, dramaturgo e documentarista, Zephaniah, contudo, canaliza essa pluralidade com vigor para um objetivo único: denunciar o racismo e apontar as injustiças sociais. Em Gangsta Rap, seu primeiro romance publicado no Brasil, conta a trajetória de Ray e seus amigos, jovens negros da periferia de Londres que chegam ao estrelato depois de montarem uma banda de hip hop. Mas, entre a guerra de gangues e o interesse das gravadoras, nem tudo são flores. Ao contrário, a impressão que se tem é que a violência só adquire formas múltiplas, que, assim como a própria produção artística do autor, evocam sempre uma única e terrível realidade. Ainda assim, o rastafári Zephaniah segue, em prol de sua causa, escrevendo e compondo com um pé no rap e no dub e outro no reggae, praticando, de quebra, artes marciais. Com tudo isso, não estranha que tenha ficado surpreso quando, em 2003, o governo inglês quis lhe outorgar a Ordem do Império Britânico por serviços prestados à literatura — condecoração que rejeitou. “Acho que a idéia era amaciar um radical, mostrar a alguns que o ‘novo governo trabalhista’ podia honrar até um militante rasta como eu.”
Na entrevista que se segue, concedida por e-mail a BRAVO!, fala do livro, da discriminação sofrida por ele e por outros como ele, além de suas expectativas sobre o Brasil, onde chega para falar, justamente, sobre a vida nas ruas.
Você se expressa de várias maneiras e, no caso de Gangsta Rap, mostra as suas habilidades no romance. É na literatura que você se sente mais à vontade? Ou é na música?
Acho impossível dizer com que tipo de arte eu prefiro trabalhar. Quando estou fazendo alguma coisa, ela se torna a mais importante do mundo. E ainda acho que posso fazer cada vez melhor. Mas eu quero alcançar o maior número de pessoas possível. Acho difícil em uma única área, em várias é mais fácil. Muitos que leem meus romances não leem minha poesia, alguns que lêem minha poesia não vêem minhas peças, e alguns destes não verão meus documentários para a TV. A música me apresenta a um público bem diverso.
E a poesia? Uma de suas marcas é investir na oralidade da poesia, no ritmo das palavras. É uma maneira de conciliar literatura e música?
Eu ouço música quando ouço palavras. Quando começo a escrever, ouço ritmos na minha cabeça. Mesmo quando escrevo diálogos, ouço o som das palavras. Acho que me saí bem ao trazer música para as palavras. Um dos meus principais interesses agora é levar a literatura para a música.
Em Gangsta Rap, a vida do personagem Ray começa com um processo contínuo de perdas. No caso dele, a possibilidade de redenção chega por meio do hip hop. Mas qual seria a alternativa para outros tantos?
Há muitas. Música é um sonho, mas também há o futebol, o boxe, o basquete, e cada vez mais se pode tentar o teatro e a literatura. A realidade é que muitos falharão. Mas eu só posso falar do mundo que conheço, que é a Inglaterra e a Jamaica. Nesses países, muitas pessoas querem apenas ser famosas. Para elas, o caminho não importa. Farão de tudo para sair da pobreza.
Um tema muito frequente no seu universo é a vida que se leva nas ruas, o que leva muitos meninos para a morte violenta e precoce. Como você vê essa questão?
Quando eu era criança, eu não escolhi viver nesse lugar onde há violência e morte. O fato é que nasci lá. A luta era para sair do gueto. Quando eu era pobre, quando não havia esperança, eu vivia ilegalmente. Todos ao meu redor viviam. A tarefa do governo é criar uma sociedade que possa gerar emprego e dar perspectiva às pessoas. Muitos governos estão falhando com seu povo. Eu nunca vi um prédio do parlamento em uma favela.
Em Gangsta Rap, a violência persiste mesmo depois do sucesso da banda de Ray. Não há escapatória?
Eu queria mostrar como as gravadoras ganham com essa imagem de bad boy. É fácil se você compuser um rap sobre quantas garotas e carros você tem, sobre quanto você é durão. Muito mais difícil é fazer um rap sobre a corrupção na política, sobre a violência doméstica, a exploração das multinacionais, das gravadoras.
Outra coisa evidente em seu livro é uma guerra de ricos contra pobres. Uma guerra da imprensa em busca da notícia. Uma guerra do mercado contra os artistas. Nós vivemos um estado de guerra permanente?
Guerra talvez seja uma palavra muito forte, mas há um conflito constante. Os ricos têm preocupações muito diferentes das dos pobres. Um artista será sempre um escravo se produzir para satisfazer o mercado. Por outro lado, se não houvesse esses conflitos, não teríamos muito sobre o que escrever. Mas eu gostaria que esses conflitos não resultassem na morte de tantas pessoas.
Como foi sua experiência com a prisão por roubo, nos anos 70, a maneira como você foi tratado pela polícia e pela Justiça britânicas?
Eu fui tratado como qualquer negro era tratado na época. Apanhei, fui vítima de racismo, acusado injustamente por outras coisas. Quando fui julgado, sabia que não tinha chance. O juiz vivia em um mundo completamente distante do meu. As coisas mudaram, mas os negros recebem um tratamento bastante diferente do dado aos brancos.
Uma das imagens que se tem de Londres é de uma cidade multirracial e multicultural. Pode-se dizer que seja mais tolerante que outra na Europa, ou é exatamente o contrário?
Eu acredito que Londres seja a cidade mais multicultural e tolerante na Europa. Infelizmente, se eu fosse muçulmano, parado e revistado pela polícia o tempo todo, teria outra opinião. A música, a comida, os cheiros, e mesmo os bebês de raças misturadas são prova da constituição múltipla de Londres, e tudo estava indo bem até essa chamada guerra ao terrorismo. Mas os homens de terno não conseguirão acabar com a pluralidade.
Existe no Brasil uma mitologia de democracia racial, de interação entre as raças. Você já chegou a conversar com algum brasileiro sobre isso, ou esse é um assunto desconhecido para você? Qual é a sua expectativa sobre o país?
Eu conheço pouco do Brasil. Um pouco da música, a capoeira, sei que há extremos entre ricos e pobres, e que há mais negros que em qualquer lugar além da África. Sei que tem um grande time de futebol, e todos dizem que as mulheres são deliciosas. Só não sei muito da política. Meus amigos brasileiros de origem europeia dizem que não é tão ruim; já os de origem africana dizem que a vida é muito difícil, então terei de ver com meus próprios olhos. Mas também sei que Parati não representa o Brasil por completo.
A literatura, afinal, pode mudar o mundo?
A literatura por si só não pode mudar o mundo. Nem a pintura, a música ou o jornalismo. Mas eles podem fazer sua parte. Podem influenciar outras pessoas, que podem acabar mudando o mundo. Os políticos conhecem o poder da literatura, e é por isso que tentam controlá-la, por isso que tantos até já queimaram livros.
Suplemento Flip BRAVO!, agosto de 2006
© Almir de Freitas