“O libidinoso garoto bolinava as governantas de cima para baixo, da frente para trás (upa! upa!), e já estava começando a exercitar a piroca, que todos os dias elas enfeitavam”
Na genealogia fantástica traçada na obra de François Rabelais (1494-1553), tudo começa com um banquete extravagante: jogar fora qualquer comida é inimaginável; recusar alguma iguaria está fora de cogitação. E, assim, Gargamelle, mulher de Grandgousier, devora tripas de boi até não mais poder – e come tanto que acaba por dar à luz os próprios intestinos. Em meio à confusão, nasce, pelo único orifício então disponível na glutona (a orelha), o gigante Gargântua, que viria a ser o pai de Pantagruel, outro comilão e beberrão memorável.
Foi por meio desses dois personagens, aparecidos nos livros Gargântua (1534) e Pantagruel (1532), que esse médico respeitado e clérigo erudito fez do grotesco, do escatológico e do humor levado ao limite do absurdo a sua distinção como um dos mais radicais e originais humanistas do Renascimento. Pertencente a um mundo dividido entre a sisudez da Santa Madre Igreja e a elegância das doutas referências à Antiguidade clássica, Rabelais resolveu, a certa altura da vida, explorar o “mau gosto”, tornando-se uma espécie de “politicamente incorreto” avant la lettre, para satirizar – e deixar enfurecidos – os seus pares. Todos eles.
A primeira confusão que arrumou foi com a ordem franciscana, na qual ingressou na juventude. Perseguido pelos “militantes da pobreza” por causa de seu gosto pela língua grega e pelas obras humanistas da época, precisou se transferir para a beneditina, um pouco mais flexível. E teve a sorte de conquistar a proteção de pessoas importantes, o que lhe deu a liberdade necessária para abandonar a vida monástica e dedicar-se durante anos à medicina.
A literatura veio depois – e provavelmente como modo de ganhar dinheiro. Era abusado, sem dúvida. Com Pantagruel(que foi escrito primeiro), iniciou seus ataques ao academicismo da época. Levou os doutores da Sorbonne à loucura ao fazer, entre outras maldades, um trocadilho com “alma” (âme) e “asno” (âne) e inventar a palavra “Sorbonagro” – uma mistura de “Sorbonne” com “asno” (onagro). Já Gargântua, cuja educação foi deixada a cargo de grandes escolásticos, era capaz de recitar de trás para a frente uma soma considerável de obras – o que não evitou que se tornasse “idiota, palerma, distraído e bobo”. Além disso, em inúmeras passagens, é nítida a simpatia que alimenta pelo caráter mais laico da Reforma Protestante. É claro que, com tudo isso, os livros – de grande sucesso entre o público – foram proibidos.
A fronteira entre o humor e a seriedade em Rabelais, bem como seu significado histórico, já foi objeto de um sem-número de estudos. Durante o Iluminismo, satíricos divergiram bastante sobre sua obra – Voltaire, por exemplo, a detestava. Modernamente, já serviu – em dois estudos célebres – para discutir a universalidade da cultura popular (Mikhail Bakhtin) e a possibilidade – improvável – de ele ser ateu (Lucien Febvre). De qualquer modo, nada é capaz de deixar em segundo plano a, talvez, principal revolução rabelaisiana: aquela em que o riso se despe das etiquetas e se transforma numa pantagruélica gargalhada que, antes de mostrar satisfação com mundo, disseca e distorce, no seu exagero, a realidade.
Primeira Leitura, outubro de 2003
© Almir de Freitas