“Não haverá lealdade, a não ser lealdade ao partido. Não haverá amor, a não ser amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, apenas o riso de triunfo sobre um inimigo derrotado”
Aqueles que assistiriam – e sobreviveram – à Segunda Guerra Mundial tiveram, nas décadas que se seguiram, razões de sobra para encarar o futuro com pessimismo. Sobre os ombros pesavam-lhe os fantasmas de um conflito que havia deixado cerca de 50 milhões de mortos e exposto a antes inimaginável devastação do poderio atômico, então dividido pelas superpotências emergentes, Estados Unidos e União Soviética. Publicado em 1949, o romance 1984, de George Orwell (1903-1950), parece ser apenas o diagnóstico dessa época sombria, projetando pesadelos para o futuro. A leitura é válida, mas apenas parcial: na distopia orwelliana de 1984 subsiste a crença de um escritor que ainda insistia no velho humanismo, aparentemente sepultado por um tempo em que era cada vez mais difícil não sujar as mãos.
Militante de esquerda, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola contra o franquismo, Orwell – à diferença da maioria de seus contemporâneos engajados – não se rendeu ao alinhamento automático com a União Soviética. Se em 1945 ele já havia satirizado a Revolução Russa com o A Revolução dos Bichos, em 1984 apontava, sem meios-tons, a ameaça do Estado totalitário – outra ingrata novidade do século 20.
Na sua Oceania, dominada pela figura do Grande Irmão – o Big Brother que tudo vê –, o homem é privado da liberdade mais ínfima – da linguagem, reduzida a expressões simples que inibem a negação (a “novilíngua”), ao gim seboso e aos cigarros vagabundos da marca estatal Vitória. Destituído do livre-arbítrio e de aspirações e desejos pessoais, ao indivíduo só restam a adoração do Grande Irmão e a obediência ao lema do partido único: “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”. A tentativa de transgressão do casal Winston e Julia, como se verá ao longo da narrativa, só reforçará o poder quase absoluto desse Leviatã moderno.
É evidente que, mais uma vez, Orwell, que faria 100 anos no próximo 25 de junho, se espelhava na União Soviética stalinista, com o culto à personalidade e a abolição da diferença pela uniformização, do dissenso pelo consenso, do indivíduo pelo Estado. O horror por ele imaginado, contudo, ia além dos terrores infantis dos liberais e aristocratas ingleses, nostálgicos de certa elegância que o Império Britânico lhes conferia.
A força que movia Orwell era outra: se havia nele também certa nostalgia de um mundo perdido – e havia mesmo –, sem dúvida não estava associada à velha ordem, repleta de outros terrores. Ao escritor, resistente em um humanismo extemporâneo, restava alertar para as novas ameaças que rondavam a humanidade, com independência e desassombro – não importa se granjeasse inimigos em toda parte.
Hoje, mais de meio século depois de 1984, é possível que o mundo esteja feliz porque os temores de Orwell em relação à União Soviética eram infundados e a história, afinal, não nos encaminha inexoravelmente para o abismo. Mas que não se deixe de denunciar outros eventuais pesadelos e ameaças que, sob outras formas, continuam a desafiar a liberdade e inteligência do indivíduo. Mesmo que o custo seja granjear inimigos em outras partes.
Primeira Leitura, junho de 2003
© Almir de Freitas