“Feitiçaria, orgia, traição sexual, baderna e massacre, os homens do Antigo Regime podiam escutar muita coisa no gemido de um gato”
Sem os instrumentos das ciências exatas ou mesmo da filosofia, o historiador clássico é um daqueles espécimes que podem perfeitamente ser enquadrados na categoria de masoquistas intelectuais. Buscar respostas genéricas para a irracionalidade humana através dos tempos pode ser uma boa distração para mesas de bar, mas dos pobres-diabos que fazem disso seu ganha-pão cobra-se uma palavra definitiva: como e por que a civilização fez o que fez e, mais ainda, por que insiste em fazer de modo diferente o que sempre fez? Em meio a um caleidoscópio de fatos e um outro tanto de teorias mal ajambradas, é inevitável que muitas vezes as leituras da história, espelhadas num turbilhão de equívocos sem fim, acabem elas mesmas por gerar monstros similares, com diagnósticos que vão da idiotia inofensiva ao dogmatismo mais perigoso.
A historiografia moderna, sobretudo a cultural, contudo, mostra que não precisa ser assim e que a dúvida correta às vezes é mais saudável que a assertiva equivocada. Um clássico na acepção exemplar disso é o livro O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa. Nos seis ensaios que compõem o livro, o norte-americano Robert Darnton dá uma lição aos ansiosos, demonstra um método de análise flexível, acolhendo a antropologia, e, ainda por cima, diverte. No primeiro deles – Histórias que os Camponeses Contam: O Significado da Mamãe Ganso –, já mostra a que veio, fazendo picadinho do psicanalista Bruno Bettelheim e suas interpretações esquemáticas sobre os contos de fada.
O melhor, entretanto, está no texto que dá o título ao livro. Por volta de 1730, operários com péssimas condições de trabalho em uma tipografia da rua Saint-Séverin, em Paris, perpetraram uma chacina contra os gatos da vizinhança. Por quê? Bem, o patrão e a patroa, os “burgueses”, adoravam os bichos, em especial La Grise, a primeira a ser morta. Então, diria um mais apressado, era o embrião de uma revolta de classe na Europa pré-industrial. E pararia por aí. Só que os documentos informam outro detalhe: durante a matança, e nos dias que se seguiram, os homens rebentaram de tanto rir, uma “risada rabelaisiana”. Se não se estiver interessado apenas em luta de classes, também se pode perguntar: por quê? Um chute resolveria o problema. Mas por que perder a chance de tentar ir mais fundo?
Em primeiro lugar, Darnton se detém na questão de quem redigiu o relato, estende a análise para a produção artesanal da época (e mostra as incontáveis singularidades do momento e do lugar) e avança em um sem-número de superstições, principalmente na fama maligna dos gatos e no hábito bastante comum de torturá-los durante o Carnaval e em outras festas populares. Nesse exercício intelectual com método rigoroso, Darnton acaba por dizer muito da transição de um período histórico para outro – o que é muito –, mesmo que a pergunta inicial fique no ar.
Riem de quê?
Há quem possa considerar tudo isso irrelevante diante da “luta de classes”. Paciência. Aqui, o historiador mostra com maestria como um fato múltiplo pode ser uma contribuição valiosa para a inteligência. Essa coisa que, afinal, é o maior bem a ser preservado para entender os dias que correm e a história que virá.
Primeira Leitura, novembro de 2002
© Almir de Freitas