Mas antes que a retrospectiva de férias comece, reproduzo meu texto sobre o filme As Aventuras de Pi, publicado (numa versão mais compacta) na edição deste mês da revista BRAVO!, para onde eu não escrevia fazia mais de dois anos.
Bom Natal e Ano-novo a todos. E até a volta.
O que é preferível: uma história com todas as facilidades do realismo, mas aterrorizante, ou uma que seja capaz de maravilhar, ainda que muito pouco verossímil? De maneira genérica (e evitando o spoiler), é mais ou menos essa a pergunta que o protagonista de As Aventuras de Pi faz lá pelo fim do filme, certo de que a resposta só pode ser uma, em se tratando da aventura de um menino indiano à deriva durante sete meses num bote no Oceano Pacífico, acompanhado por um tigre-de-bengala feroz chamado Richard Parker.
Não há muita dúvida mesmo, e não apenas por causa do argumento da história, mas também porque Ang Lee não desgrudou da ideia de colocar os recursos cinematográficos, narrativos e técnicos, a serviço das questões estéticas e éticas feitas por Yann Martel em seu romance, A Vida de Pi. A projeção em 3D, por exemplo, está muito distante de ser gratuita – só desavisados acham que imagens em três dimensões estejam a serviço do realismo. Do começo ao fim, As Aventuras de Pi vai acumulando uma coleção impecável de enquadramentos abertos, em que a Índia mais parece um paraíso na terra e o Pacífico um programa obrigatório para qualquer bom náufrago. É bonito mesmo, ainda que às vezes se perceba uma ponta de ironia bolly e hollywoodiana.
A filmagem dos planos a partir do cenário limitado do bote foi igualmente cuidadosa, e a soma das tomadas permitiu que Lee transformasse em cenas espetaculares as epifanias que Pi vai relatando no romance: o tráfego congestionado de peixes na vida submarina, a noite pesada de estrelas sobre um mar tão tranquilo que parece um espelho, a visita ruidosa de uma baleia no meio da noite. Às vezes, chega a ser estarrecedora a fidelidade de Lee a detalhes da narrativa. Detalhes mesmo, quase imperceptíveis de tão pequenos – como a corrida em círculos da hiena no bote superpovoado de animais ou o momento em que Richard Parker sente um ligeiro desconforto ao colocar a pata na lona do barco.
Por sorte, Lee não manteve a obsessão mimética em relação às questões existenciais de Martel, que no romance se perde um pouco em meio ao excesso de simbolismos e barroquismos em torno da religião e da ética entre humanos e animais. Ao contrário, o diretor chega a criar uma sequência inteira (o salvamento do tigre) que não existe no texto para sintetizar o essencial: a descoberta de Pi de que sua sobrevivência dependia da sobrevivência de Richard Parker. Ficou bonito também.
Na sua mistura de Avatar com Robinson Crusoé, o filme de Ang Lee pode acabar estendendo mais ainda o alcance do maravilhamento da história de Pi. Um ganho extra e tanto para a obra de Martel, que vai acumulando dívidas com terceiros: já devia o argumento, a “centelha de vida”, a Moacyr Scliar, de quem “emprestou” a imagem de um garoto com um felino feroz num bote. Agora, pode ver a fatura crescer com uma versão que reduz ainda mais a eventual dúvida de que a melhor história é aquela em que Deus, longe do realismo opaco, está presente.