Bons e bem estruturados romances podem, muitas vezes, se assentar nos mais improváveis alicerces. No caso de Liberdade, de Jonathan Franzen (Companhia das Letras, 608 págs, R$ 46,50), eles são óbvios na combinação de pequenas e grandes narrativas: da impossibilidade dos pais democratas de Patty de amá-la às tramoias republicanas durante a Guerra ao Terror; do alcoolismo de Gene à militância ambiental do filho, Walter; da heroína da mentirosa e doidinha Eliza ao episódio Mônica Lewinsky no governo Clinton; do rock barulhento do grandalhão e sedutor Richard Katz às paisagens brancas e racistas do meio-oeste americano.
Sobre todas esses episódios concorrentes, muito — bem ou equivocadamente — já se escreveu. Mas, como disse, há outros materiais que dão liga a essas narrativas ao longo de 50 anos de história americana e 600 páginas de literatura: as músicas (de Bob Dylan a Céline Dion), os livros (de Gibbon e Thomas Bernhardt, passando por um decisivo Guerra e Paz, até Ian McEwan). E ainda outros, mais corriqueiros ainda, muito menos nobres, porém igual e obrigatoriamente certeiros.
Não é de se ignorar, por exemplo, a pesquisa que Franzen se obrigou a fazer para colocar carros certos em pontos estratégicos do romance. De uma maneira que eles pudessem, também, ajudá-lo a contar uma história — como, por exemplo, a que segue abaixo. É tão incompleta quanto à contada pelos livros e músicas por ele elencados e, talvez, dos próprios grandes acontecimentos. Ou talvez sejam eles, os carros, apenas um autogracejo com a letra de uma das músicas de Katz: “Que Cabeças Pequenas nesses carros gigantes! / Loucos de felicidade, sentados ao volante! / (…) / Começo a me sentir / LOUCO DE FELICIDADE! LOUCO DE FELICIDADE!”
Cadillac Eldorado: de Einar, o sueco emigrado que tinha tão pouca paciência no trânsito quanto o neto, Walter. Conectado com duas tragédias.
Mercedes último tipo: dos ricos e sovinas avós paternos de Patty, que em certo Natal deram de presente panos de prato usados para a nora, Joyce, e livros do saldão da Barnes & Noble para o filho, Ray.
Chevrolet Impala: do colega de quarto de Walter, o roqueiro Richard Katz. Um carro enferrujado em que a jovem Patty embarcou numa viagem a Nova York, decidida a transar com ele.
Ford Crown Victoria: onde Patty anunciou a Walter (depois do fiasco da viagem com Katz) que queria transar com ele. O carro era do pai dele, Gene.
Volvo 240: O carro simples da família Berglund — Walter e Patty, mais os filhos Jessica e Joey — em St. Paul, Minnesota, já nos anos 80.
“Vários Subarus: Das antigas amigas de Patty, do tempo em que ela chegou a ser estrela do basquete universitário.
Ford F-250: a pavorosa picape do pavoroso Blake, vizinho racista cujos pneus de neve Patty rasgou em certo dia de fúria e, talvez, de bebedeira.
Picape Toyota: o novo carro de Richard, que, nos intervalos de fama como músico, construía deques — um deles para a cada de lago do amigo Walter, onde Katz se viu, certo dia, a sós com Patty.
Toyota Land Cruiser: o carrão de Jonathan, o judeu de família milionária que Joey tinha como companheiro de quarto na universidade, Charlottesville. Nela, os dois (mais a irmã estonteante de Jonathan) viajaram para Nova York.
Lexus 4 x 4: queimador de gasolina que Patty mencionou hipoteticamente ter, só para irritar o ambientalista Walter, com quem vinha brigando cada vez mais.
Pladsky A 10: o imprestável caminhão polonês vendido ao exército americano durante a Guerra ao Terror, negócio que colocou Joey numa enrascada.
Lincoln Navigator: carro imenso de Vin Haven, plutocrata com o talento de misturar a preservação do passarinho Mariquita azul com negócios bélicos.
Ford Econoline: van branca e pichada com tinta spray da fase meio hippie de Walter, depois de romper com Patty e com os esquemas de Vin Haven.
“Um compacto coreano: alugado pela namorada de Walter, a jovem indiana Lalitha, que organizava um festival em prol da conscientização dos males da superpopulação. Só vou dizer que o carro é crucial para o resto da história.
Toyota Prius: carro flex de Walter, recolhido à casa do lago, onde se dedicava a proteger os passarinhos da região. No vidro, o adesivo OBAMA.
Suburban: van imensa, queimadora de gasolina, de Linda, evangélica republicana vizinha de Walter e dona de um gato naturalmente predador de passarinhos.
Volvo preto “novinho”: de Joey, casado com Connie.
Hyundai: da cinquentona Patty, estacionado num dia gélido em frente à casa do lago.
(Publicado em 6/7/2011)