Adolf, o führer
A Queda! As Últimas Horas de Hitler tenta divisar o rosto do mal em meio à impessoalidade dos fatos históricos
No dia 20 de abril de 1945, confinado em seu bunker na chancelaria alemã, Adolf Hitler completava 56 anos de idade. A festa de aniversário foi mais que modesta. Fazia poucas horas que o Exército Vermelho havia iniciado o cerco final a Berlim, avançando em direção ao centro da cidade em meio aos escombros e a um inferno de fogo de artilharia. Eram mais de dois milhões de soldados russos contra aproximadamente 100 mil nazistas, boa parte deles crianças e jovens recrutados na última hora. A proximidade entre os dois fatos, naturalmente, não passa de acaso. Mas essa mescla entre um evento histórico grandioso e um detalhe da vida pessoal de seu principal protagonista serve como um bom mote para um filme como A Queda! As Últimas Horas de Hitler, que, depois de causar polêmica na Alemanha e concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, estreia neste mês no Brasil.
Baseado nas memórias de Traudl Junge (Until the Final Hour: Hitler's Last Secretary), secretária pessoal do ditador nazista entre 1942 e 1945, e no livro Inside Hitler's Bunker: The Last Days of the Third Reich, do historiador Joachim Fest, o filme equilibra-se sobre esse pequeno conflito, indecifrável no mais das vezes, entre aquilo que pertence estritamente ao âmbito do indivíduo e aquilo que os historiadores podem registrar – seja ele obra do acaso ou não. Do material que recolheram, o produtor e roteirista Bernd Eichinger e o diretor Oliver Hirschbiegel se propuseram a traçar o retrato de um homem diante da derrota e da morte, mas, evidentemente, sem perder de vista de que se tratava de um homem excepcional, cujo destino pessoal – ainda que marcado pela total impotência – estava ligado aos rumos da história.
A tarefa é árdua, e não escapou a protestos. Cinqüenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, numa Alemanha ainda traumatizada pelo nazismo, não faltou no país quem visse em A Queda! uma tentativa suspeita de “humanizar” o ditador, retratando-o não apenas como o monstro que a história registrou. É verdade que já na primeira sequência do filme, Hitler (interpretado magnificamente por Bruno Ganz) é de uma lhaneza extrema ao ser apresentado às candidatas a secretária; quando aplica o teste de datilografia a Junge, é infinitamente paciente. Três anos depois, nos 12 derradeiros dias em que se passa o restante da A Queda!, é mostrado como um velho cansado e doente, que alterna as mesmas gentilezas com as pessoas que lhe são próximas com frequentes explosões de fúria contra seus comandados. A secretária Junge não entende as oscilações; Eva Braun, a amante, explica: “Há o Adolf e há o führer”.
Mas o temor dos alarmistas não procede. O monstro personificado em gente (ou quase isso) que vêem é a consequência natural do argumento e das fontes em que se baseia o roteiro. Mas também é de uma concepção dramática que tem sua lógica: ao acompanhar, nas duas horas e meia de duração de A Queda!, as aparentemente contraditórias reações de Hitler diante das pessoas e dos fatos que lhe são reportados, temos notícia das próprias pessoas que o cercavam, da história que transcorria naqueles dias decisivos e, finalmente, do próprio Hitler – do Adolf que é o führer, sem distinção. De mais a mais, esse tipo de narrativa não age apenas, se é que se pode dizer assim, “a favor” de Hitler. Ao contrário, abre naturalmente um espaço para retratar (emprestando uma imagem de Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte) um bufão sério que tomava a sua própria comédia pela história universal. E aqui não se trata mais de acaso.
É desse modo que, até o último instante, Hitler insiste em arrastar para a sua própria tragédia a população de Berlim. Dispensa os conselhos do comandante das SS e da Gestapo, Heinrich Himmler, de fazer um acordo político com os Aliados para minimizar as consequências da ocupação soviética; evita admitir a derrota iminente apontada por seus generais; despreza as baixas civis de um combate sem sentido e ainda é capaz de enxergar uma serventia na destruição da capital, que “facilitaria” a construção dos edifícios megalômanos do Terceiro Reich, destinados a sobreviver mil anos. E, quando finalmente se convence de que a guerra está perdida, e inicia os preparativos para o seu suicídio, proíbe seu alto comando de assinar a rendição e determina que não se deixe pedra sobre pedra na Alemanha para os inimigos.
Não há sombra de dúvida também em relação à sanidade dos que lhe são mais leais. O maior e mais famoso deles, o sinistro ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, só é suplantado em horror pela própria mulher, Magda – “a mãe mais corajosa da Alemanha”, nas palavras de Hitler numa patética cerimônia de condecoração dentro do claustrofóbico bunker. Numa sequência interminável, a senhora Goebbels seda os seis filhos pequenos e, como uma Medeia enlouquecida pela ideologia, os mata, um por um, com cápsulas de cianureto, porque não os quer “vivendo em um mundo sem o nacional-socialismo”.
Ainda assim, tudo isso pode parecer insuficiente. E é mesmo. Há história aí, mas há muito também, claro, de representação. Como afirmou certa vez num texto o escritor italiano Primo Levi – ele mesmo um sobrevivente de Auschwitz –, é provável que exista mesmo uma “insuficiência essencial da página documentária para nos restituir o íntimo de um ser humano, mesmo que este seja a personificação do mal – Hitler, Stálin, Goebbels ou Himmler. Mais que ao historiador e ao psicólogo, a tarefa se ajustaria mais à representação narrativa da literatura”. A Queda! nos permite acrescentar aí o cinema, com todas as suas limitações e às vezes surpreendentes possibilidades.
BRAVO!, maio de 2005
© Almir de Freitas