A última obra-prima
Ao mesclar ficção, memorialismo e ensaio em Austerlitz, o alemão W. G. Sebald apontou novos caminhos para o romance
Quando W. G. Sebald publicou Austerlitz, em outubro de 2001, o impacto foi grande. Por um lado, muitos críticos consideraram o romance a obra-prima de um escritor que traria vigor a um gênero que girava em falso nas suas tentativas de renovação. Por outro lado, houve quem visse o livro como o prenúncio de um impasse, como se a radicalização das fórmulas presentes nos poucos livros anteriores do autor conduzisse ao esgotamento, não a uma renovação verdadeiramente duradoura. Os dois prognósticos, contudo, mergulharam no vazio diante da fatalidade: dois meses após a publicação de Austerlitz, Sebald, aos 57 anos, sofreu um ataque cardíaco ao volante de seu Peugeot 306, colidindo de frente com outro carro numa rua de Norwich, na Inglaterra, onde morava desde os 22 anos. No banco de passageiros, sua filha Anna ficou gravemente ferida. O autor, nascido em 1944 na Alemanha, que havia lançado apenas quatro livros, teve morte instantânea.
É uma dolorosa ironia que a morte tenha ceifado o futuro literário de um escritor cuja obra se alicerçava no esforço de juntar os pedaços do passado, numa luta contra o esquecimento. Desde a publicação de Os Emigrantes (1993), um conjunto de quatro relatos de exilados da Alemanha nazista, Sebald foi associado a uma linhagem de autores alemães que escreviam na sombra do trauma coletivo do Holocausto. Por conta disso, não faltaram comparações com, por exemplo, seu compatriota Günter Grass, tido (antes que se soubesse que havia sido voluntário da Waffen-SS, tropa de elite nazista, durante a Segunda Guerra) como uma espécie de militante contra o esquecimento dos horrores perpetrados pelos alemães.
Mas o paralelo é imperfeito. O desconforto agudo que a obra de Sebald provoca se deve menos aos seus temas do que à forma, à maneira como ele demonstra que a luta para juntar os cacos desse passado estilhaçado — uma luta que define sua própria literatura — é, no fim das contas, vã. Se alguma comparação é cabível, ela pode ser feita genericamente com o francês Marcel Proust, o artífice da memória por excelência em sua “busca pelo tempo perdido”; ou, mais precisamente, com o escritor V. S. Naipaul, que, com uma obra em que memorialismo, reflexão e literatura se entrecruzam, traz à luz histórias pessoais esmagadas pela história. Mas a semelhança mais evidente é com a obra do austríaco Thomas Bernhard, escritor que também opera no universo do mal-estar do pós-guerra e com quem Sebald partilha o recurso de escrever seus romances em praticamente um único e longo parágrafo.
Com suas mais de 400 páginas, Austerlitz não é um livro fácil. Embora Sebald escreva com clareza cristalina, de forte apelo visual, essa literatura concentrada num único fluxo narrativo dispensa os recursos tradicionais que diferenciam descrição, ensaio, memória, diálogos e até mesmo personagens. Como respiro, conta-se apenas com fotografias espalhadas ao longo da edição, que não apenas ilustram o texto, mas também lhe servem de mote ou contraponto. No romance, o narrador é alguém sobre quem temos poucas informações, e que bem pode ser o próprio Sebald, como aquele narrador visto na mistura de memorialismo e ensaio de Os Anéis de Saturno (1999), um livro escrito nas andanças do autor por Norfolk, na Inglaterra.
Em ambos os casos, entretanto, fica evidente que não se trata de autobiografia nem de pura invenção. Essa zona nebulosa entre a realidade e a ficção em que o escritor opera explica, em grande parte, o entusiasmo que Austerlitz despertou. E essa sensação de que a história ali contada trafega na fronteira entre dois mundos é reforçada pelas fotografias — que trazem lugares, situações e rostos que existem, mas que não correspondem necessariamente às suas identificações. No conjunto, a sensação é que não se compreende totalmente o que está se passando, ao mesmo tempo em que fica evidente que nada no romance, do longo parágrafo à presença das fotos, é gratuito.
MONÓLOGO CONTÍNUO
O narrador de Austerlitz, portanto, é um viajante que, numa ocasião em Antuérpia, em meados dos anos 60, conhece Jacques Austerlitz, um professor de arquitetura. Alguém que, “prisioneiro da clareza de suas reflexões lógicas e da confusão de seus sentimentos”, lhe lembra o filósofo austríaco Wittgenstein. A definição serve de chave para descrever a torrente narrativa que segue. Nos anos posteriores a esse encontro, o narrador e Austerlitz voltam a se encontrar várias vezes — quase sempre por coincidências bizarras. Num desses encontros, Austerlitz decide contar sua história. “Eu nunca soube quem na verdade sou”, ele diz, começando.
Criado por um pastor calvinista e sua mulher numa casa opressiva, num vilarejo do País de Gales, Austerlitz descobre aos 15 anos sua verdadeira identidade. Não se chamava Dafydd Elias, mas Jacques Austerlitz, e havia nascido em Praga. Sua verdadeira família — como fizeram muitas outras famílias judias de países sob ocupação nazista — o havia enviado secretamente para adoção ao Reino Unido, livrando-o do gueto ou da evacuação para os campos de concentração. O notável é que, para contar essa história, o narrador transfere sua função ao personagem, por meio de um simples “disse Austerlitz”, fórmula que pontua toda a narrativa. Algumas vezes, quando o segundo narrador reproduz a fala de um terceiro, o recurso é simplesmente duplicado: “(...) disse Vra, disse Austerlitz”, por exemplo.
O resultado é um monólogo contínuo, sempre em primeira pessoa, ainda que com vários personagens. É mais do que mero artifício literário: trata-se de uma “coleta” de reminiscências em que as vozes dos vivos e dos mortos coexistem num fluxo narrativo que traduz uma totalidade perdida. A esse mosaico de estilhaços juntam-se, além das fotos, as considerações sobre arquitetura, cruciais na apresentação de uma concepção de mundo em que as imagens, os objetos e os edifícios também têm, por assim dizer, uma voz. Também eles, ao contar uma história particular, dão notícias de desejos e histórias de um passado que se prolonga no presente. É a eternidade que Austerlitz procura apreender. Uma tarefa que — Sebald sabe — é por definição inconcebível.
Esse “fracasso”, contudo, tem um efeito devastador sobre o leitor. Com uma linguagem “clara” na sua lógica, mas que insinua a todo momento uma “confusão de sentimentos” (como naquela definição de Wittgenstein), Austerlitz é, de fato, um romance grandioso. Os entusiastas da literatura de Sebald viram, com acerto, que ela trazia num registro original todas as questões cruciais para a discussão dos rumos da literatura contemporânea. Além de tornar a ficção permeável ao ensaio e ao memorialismo, Sebald mostrava que era possível criar, fora do território militante das vanguardas, fórmulas narrativas capazes de conjugar histórias pessoais com a da humanidade.
É impossível medir o que a morte precoce de Sebald custou à literatura. O que podemos dizer é que a sua força formal e temática apontava para um futuro promissor, longe do maneirismo farejado por seus críticos. Mas sobre isso, evidentemente, não podemos ter certeza; podemos apenas recolher os sinais de algo que está perdido. Um futuro que, como o passado descrito em seus livros, é “um abismo no qual não penetra nenhum raio de luz”, onde o que se foi “não pode ser mais resgatado das profundezas”.
BRAVO!, abril de 2008
© Almir de Freitas