O espaço permitido
Domésticas, o Filme, o primeiro longa de Fernando Meirelles, expressa a tragédia social do país em uma boa comédia
Não é surpreendente, num país como o Brasil, que se tenha criado múltiplas abordagens cinematográficas em torno do apartheid social que se expressa no cotidiano de qualquer um que vive nas grandes cidades. De tudo se fez um pouco: da romantização da marginalidade ao documentário de impacto, passando pela ternura dolorosa de Hector Babenco em Pixote e a agressividade sem meias-palavras de Sérgio Bianchi em Cronicamente Inviável, cada um a sua maneira expondo as feridas de um país injusto.
Nessa história, insere-se Domésticas, o Filme, de Fernando Meirelles e Nando Olival, baseado no teatro-dança de Renata Melo, que é co-roteirista do filme e também atua na produção como a empregada Cida. Mas há diferenças. A principal delas é que, em meio a soluções que sempre oscilaram entre o paternalismo dos bem-pensantes e a estetização da miséria, trata-se fundamentalmente de uma comédia, com o desafio adicional de transpor a narrativa dos palcos para o cinema. Os diretores se saem bem e, verdade seja dita, contaram com a vantagem de ter uma trama bem concebida desde a origem do argumento.
Para escrever a peça, Renata procurou se aproximar o máximo possível da realidade das empregadas domésticas, realizando várias entrevistas, o que situa o texto no campo do semi-documental. Chegou a seis personagens centrais: Cida, que vive um casamento monótono; Roxane, que sonha ser modelo; Zefa, a velha empregada; Raimunda, a sonhadora e romântica; Créo, a evangélica, e Quitéria, a tonta e atabalhoada que não consegue parar em emprego nenhum. Por meio das histórias individuais de cada uma, o argumento explora um fato, tão real quanto corriqueiro, que é o momento em que os rostos da periferia – esse outro mundo – transpõem os limites em que são confinados e se encaixam nos cenários dos bairros nobres, da maneira como costuma ser permitido: servil.
Por si, isso já traz uma carga simbólica que dispensa maiores artifícios para exibir o contraste social. Nem é necessário que se alinhe a “oprimido” o plutocrata opressor – aliás, os patrões nunca aparecem. O que se vê apenas são os seus rastros, símbolos que se acumulam e que se bastam: carros de luxo, condomínios de segurança máxima, cozinhas superequipadas. Ou até mesmo a infra-estrutura urbana dos que são vistos pelo Estado e pela economia, com seus túneis, lojas e luminosos.
Em alguns momentos, a narrativa se dá por meio de depoimentos. Embora o texto traga frases de impacto, às vezes um pouco caricaturais como as próprias personagens (“Por que que eu tinha de nascer assim, desse jeito, pobre, preta, ignorante?” ou “Elas aturam a gente porque elas não gosta (sic) de limpar bosta, esfregar chão, lavar as cueca (sic) dos maridos, né não?”), opta-se por atenuar tanto quanto possível a agressividade, recorrendo-se com frequência ao bom humor. É evidente que isso traz suas vantagens, mas seria fatal que a moeda de troca dessa intenção presumida de deixar o espectador mais à vontade descaracterizasse a razão mesma do filme.
A saída – ao mesmo tempo em que se manteve o investimento no lado documental, realçando os depoimentos dramáticos com uma fotografia diferente – foi criar sequências específicas para o filme, o que se revelou uma dupla solução. Além de dar à trama uma feição cinematográfica, reforçou a tragédia ao agregar ou destacar outros personagens daquele mundo de periferia – faxineiros, motoboys, porteiros, motoristas – em ambientes que se diversificam, sem se perder de vista o cenário original e o tom testemunhal. Para isso, Meirelles e Olival recorrem a sequências extremamente bem filmadas, com locações externas com muito movimento e sob as mais variadas condições de luz.
A boa montagem e a edição provocam seu efeito: com agilidade, passa-se da área de serviço para a viagem do ônibus em alta velocidade, da garagem do edifício para as casas noturnas e de prostituição, do jardim para o teto de uma casa de periferia. E sempre seguindo a mesma lógica dos mundos diferentes que por vezes se misturam. Mesmo no bom humor do filme, a tragédia não só se sustenta, como ameniza o fardo do que há de caricatural e fica mais visível na maior complexidade do mundo que se exibe. Se o modo permitido desses rostos surgirem nos cenários dos privilegiados é o do servilismo, às vezes pode acontecer também no confronto com um assaltante. Não fica tão engraçado, mas também não destoa do argumento inicial.
BRAVO!, maio de 2001
© Almir de Freitas