Stephen Cummings

O epitáfio de uma geração

Em Fantasma Sai de Cena, Philip Roth faz uma parábola sobre o fim da era em que escritores pautavam o debate nos EUA

Em meados do século 18, um aldeão chamado Rip Van Winkle adormeceu sob uma árvore nas montanhas Catskills, em Nova York, tirando um cochilo que se prolongou por 20 anos. Quando acordou, se viu desorientado em um mundo completamente diferente, em que, entre outras coisas, os Estados Unidos não eram mais uma colônia britânica. A parábola criada pelo escritor Washington Irving (1783-1859) está por trás de Fantasma Sai de Cena, livro em que Philip Roth encerra o ciclo de Nathan Zuckerman, o personagem-escritor que acompanhou, em nove romances, meio século de história americana. E, por meio da derradeira história de seu alter ego — um homem ultrapassado como Van Winkle —, Roth constrói uma nova parábola, num livro que soa como o epitáfio de sua geração, a dos escritores intelectuais cujos romances pautavam o debate cultural. Geração que tem como sobreviventes Gore Vidal e John Updike, além do próprio Roth, e teve também entre seus expoentes Saul Bellow (1915-2005) e Norman Mailer (1923-2007).

Não é uma história otimista nem agradável. Em Fantasma Sai de Cena (no original, Exit Ghost), Zuckerman está de volta a Nova York, aos 71 anos, para tentar curar a incontinência urinária de que sofre desde que removeu a próstata cancerosa — uma cirurgia que o deixou, além de tudo, impotente. O ano é 2004, e 11 anos se passaram desde que ele decidiu viver recluso (como Roth) nos montes Berkshire, a 200 quilômetros de Manhattan. Foi justamente ali, em 1956, que o personagem surgiu, com 23 anos, no romance The Ghost Writer (no Brasil, publicado com o inacreditável título Diário de uma Ilusão). Em sua volta, Zuckerman — um homem sem celular e internet que escreve a máquina — descobre a real extensão de sua velhice em um mundo que, no fundo, ele não compreende — e que dele parece prescindir.

“Antigamente as pessoas inteligentes usavam a literatura para pensar. Esse tempo passou”, diz no romance uma envelhecida e também doente Amy Bellette, a mulher atraente que havia despertado as maiores fantasias no jovem Zuckerman em Diário de uma Ilusão. E foi nesse tempo a que ela se refere, em que nascia um país que oscilava entre democracia e segregação, entre opulência cosmopolita e puritanismo provinciano, que a geração de Roth ganhou projeção na discussão dos rumos da América.

No âmbito estrito das ideias, ninguém representou tão bem o materialismo ascendente da América quanto o canadense naturalizado americano Saul Bellow — uma espécie de pai espiritual de Roth, com quem divide o legado de ter devassado, sem nenhuma complacência, o mundo dos imigrantes judeus. Já Norman Mailer, outro judeu, se destacou no ativismo contra a Guerra do Vietnã. Em Os Exércitos da Noite (1968), com que venceu o Pulitzer, o escritor traçou um impressionante retrato de um país em crise, ao reconstituir os acontecimentos em torno da grande manifestação de 1967 em Washington contra a guerra. Roth, aliás, levou o tema a outro romance do ciclo Zuckerman, Pastoral Americana (1997). Ali, a ideia de crise é ainda mais aguda, na história da modelar família americana Levov, arrastada à ruína depois que a filha, em protesto contra a guerra, explode um mercado e mata um inocente.

Outro vencedor do Pulitzer, John Updike, investiu no retrato da vida suburbana para representar aquele novo mundo. Na tetralogia Coelho, acompanha três décadas das mudanças sociais e comportamentais do país por meio da trajetória de Harry Angstrom, o protótipo do americano médio. Já Gore Vidal, um aristocrata de berço, assumiu seu homossexualismo e não perdoou a caipirice de seus pares em livros como Myra, sobre uma transexual de dupla personalidade. Mas também aproveitou sua formação privilegiada para reconstituir as origens do país em romances históricos como Império (1987).

11 DE SETEMBRO

Como, por que e em que momento ocorreu o divórcio entre os escritores dessa geração e a América? A crer em Amy Bellette, a explicação está no triunfo da cultura de consumo fácil e de culto a celebridades. Não é difícil concordar com tal diagnóstico, embora as coisas não sejam tão simples. Roth bate duro no jornalismo cultural interessado apenas em fofocas, mas sabe que o mais interessante e digno de ser convertido em literatura pertence ao território das contradições. Em Fantasma Sai de Cena, Zuckerman sabe pouco — e não tem interesse em saber mais — sobre a reeleição de George W. Bush, a Al-Qaeda e a Guerra do Iraque. Tudo o que evidencia a dimensão do deslocamento de “um homem de fraldas” entre jovens bonitos, impetuosos e agressivos.

Se o foco, aqui, está no drama individual, ele não exclui uma eventual nova parábola, sobre uma geração que não foi capaz de fazer frente a esse mundo, de lidar com as referências de outros tempos. É impossível não se constranger com, por exemplo, O Grande Vazio (2004), livro em que o antes vigoroso Mailer desfia generalidades sobre política americana e pessimismo em relação às novas tecnologias. Ou, ainda, não deixar de observar como Updike usa um cenário velho — o mundo do subúrbio — para tentar compreender um personagem novo, um árabe, em Terrorista (2006). Já em Sonhando a Guerra (2002), Vidal chega ao disparate. Ele jura que os atentados de 11 de Setembro foram cometidos com a conivência de Washington, fato que teria sido encoberto pela imprensa.

Roth não endossa necessariamente essa leitura da “geração deslocada”, mas também evita, habilmente, assumir o discurso vitimista de Amy Bellette. Ambos, contudo, fazem parte de um destino do qual Zuckerman, em sua impotência — literal e metafórica —, não pode escapar. Nesse sentido, Fantasma Sai de Cena é um retrato ainda mais duro da velhice do que o que o próprio Roth apresentou em Animal Agonizante (2001) e Homem Comum (2006). Mostra como, por quaisquer razões que se queira, mesmo grandes homens acabam, um dia, ficando para trás.

BRAVO!, junho de 2008

© Almir de Freitas



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