Embora não seja de modo algum ignorado, Fédon não é certamente o mais popular dos diálogos socráticos transcritos por Platão. Está aí A República, com suas vastas implicações políticas e, não menos, com o fascínio provocado pelo mito da caverna – que já inspirou desde quadrinhos de Maurício de Souza até (toscas) subalegorias anticapitalistas de José Saramago. Mas é no extremo da circunstância em que Fédon se desenrola – a proximidade da morte – que reside muito do pensamento socrático-platônico que persistiu nos séculos subsequentes, incorporado como foi pelo cristianismo.
Narrada por Fédon, é a última conversa de Sócrates com seus discípulos, pouco antes de beber a cicuta, pena a que tinha sido condenado sob a acusação de “corromper a juventude” de Atenas. São oito os participantes ativos, e o tema, sob a sombra da execução iminente, gira em torno de um conceito fundamental no universo socrático – a noção dos contrários, de como eles, pelo exercício filosófico da busca da verdade e da virtude, podem se complementar. E é por meio desse sinuoso caminho argumentativo que Sócrates chegará à demonstração da imortalidade da alma.
Na sua paciência pedagógica, essa narrativa nasce, como sempre, de uma situação prosaica. Retirado o grilhão que lhe apertava a perna, Sócrates observa como a dor e o prazer se recusam a ser simultâneos no homem, mas que, cessada a primeira, sobrevém imediatamente o segundo. Daí para a oposição entre a vida e a morte será um passo – e a explicação da aparente resignação do filósofo diante de seu destino.
“O único trabalho do filósofo”, diz para os inconformados discípulos, “consiste em preparar-se para a morte”. Porque aí está a outra oposição, crucial: o corpo e a alma. Admitindo-se a existência desta – e esse postulado há de ser esclarecido e aceito mais adiante –, Sócrates dedica-se a reiterar os fundamentos da sua filosofia, em que os sentidos próprios do corpo são entraves ao conhecimento e à verdade. Aquela mesma que os videntes da caverna, iludidos com as sombras, jamais poderiam atingir.
Mas um dos discípulos, Cebes, intervém com uma questão, diríamos, mais que pertinente: e se não existir, afinal, nada além do corpo? E se a alma é destruída no momento da morte, e só existir o vazio? Mais que invocar fé ou dogma, Sócrates sustentará a mesma noção do movimento cíclico de contrários, agora claramente tomada como princípio universal a reger o mundo, que se renova em razão desse movimento. Os contrários são dependentes entre si, como se houvesse uma compensação recíproca, que tira o universo da imobilidade e dá um rosto ao absoluto. “Aprender não é outra coisa senão recordar” – essa outra máxima socrática que só se sustenta nessa concepção.
A morte, assim, passa a ser o momento em que se pode atingir o maior grau do saber, o momento da “purificação”. As implicações éticas dessa formulação são imensas e sujeitas a muitas distorções. Mas, no caso desse diálogo derradeiro, serve quase como o fio de uma tragédia em que o personagem central, condenado a beber cicuta, aproxima ele também os contrários, transformando o opróbrio em dignidade.
Primeira Leitura, abril de 2004
© Almir de Freitas

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Fédon

(...) ou jamais nos será possível conseguir a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque a alma, quando separada do corpo, existirá em si mesma”

Robin Hamman