Kıvanç

Solidão com vista pro mar

Sucesso no Brasil, o Prêmio Nobel de Literatura Orhan Pamuk retrata em Istambul a melancolia de seu país e de sua cidade

Pelos manuais de geografia, sabemos que Istambul, banhada pelas águas do estreito de Bósforo, está localizada exatamente no ponto que separa a Europa e a Ásia, o Ocidente do Oriente. Já os de história nos falam dos tempos de uma cidade rica e poderosa, quando se chamava Bizâncio e Constantinopla, mas também de sua decadência a partir dos séculos 19 e 20, diante da crescente força do Ocidente. Coisas que dão um pouco da medida desta cidade, onde nasceu e cresceu o escritor turco Orhan Pamuk, que, em 2003, lhe legou uma espécie de elegia melancólica, Istambul. O livro, que está sendo publicado agora no país, nos diz algo que aqueles outros livros não podem mencionar.

O leitor brasileiro conhece bem Pamuk. O romance Neve, lançado no país quase que simultaneamente ao anúncio da premiação do escritor com o Nobel de Literatura, em outubro passado, já vendeu, segundo a editora, 55 mil exemplares, um número espetacular num país em que as tiragens raramente ultrapassam 3 mil. Contudo, a leitura de Istambul é bem diversa: se naquele — romance de ficção — o mote é uma Turquia conflituosa em forma de alegoria política, neste — livro de memórias — predomina o relato de um lugar em que os conflitos estão, sem remédio, enraizados.

Num jogo de “secreta simetria”, como ele chama, Pamuk alterna o relato de sua infância e juventude com descrições da vida em Istambul, apreendida por meio de sua percepção e de outros artistas e escritores, turcos e estrangeiros. Combinadas, são relatos de uma cidade vista de maneira impressionista, em “preto-e-branco”, desenhada sempre com o horizonte marcado pelo Bósforo com suas barcas a expelir vapor negro e, com frequência, riscadas por um grande incêndio noturno. É também uma cidade pobre, coberta de ruínas de tempos gloriosos, com as construções históricas dos paxás otomanos destruídas, “encurralada” entre o passado o presente.

A SIMETRIA DA HÜZÜN

A simetria que Pamuk evoca, e que lhe abre a possibilidade de também escrever um romance de formação, sobre as suas origens como escritor, tem um ponto de equilíbrio no que ele chama de hüzün — palavra turca que significa melancolia, mas que tem um sentido mais coletivo que individual. Assim, a melancolia experimentada pelo autor reflete a de Istambul. Trata-se, ele enumera longamente, “das muralhas da cidade, em ruínas desde o fim do Império Bizantino”; “do cheiro das respirações exaladas nos cinemas, no passado prédios reluzentes com tetos dourados, hoje salas pornô frequentadas por homens de expressão envergonhada”, “das torres de relógios em que ninguém repara”, “dos livros de história em que as crianças leem sobre as vitórias do Império Otomano e das surras que essas mesmas crianças levam em casa”, entre outros exemplos. Coisas pequenas que não estão naqueles livros de história e geografia.

Obedecendo à sua simetria, Pamuk relata a sombria “casa-museu” do Edifício Pamuk, onde morava, cada andar para cada ramo da família, cada andar com piano nunca usado (“eu achava que os pianos fossem apoios para a exposição de fotografias”). E também o declínio financeiro de sua família, de um pai em conflito com seus tios por causa dos negócios e com sua mãe por causa das amantes. Na juventude, a percepção de uma elite provinciana e tacanha, que afeta sua vida escolar e lhe custa seu primeiro amor, porque, ao invés de industrial ou arquiteto, preferia ser pintor.

Não é à toa que Pamuk dedica um dos capítulos a Antoine-Ignace Melling (1763-1831), um dos grandes retratistas do Bósforo. Porque é quase como um pintor que ele desenha essa melancolia citadina, que ata todos os cidadãos em imagens de multidões de resignados. Ao passo que desdobra os clichês, buscando seu fundamento mais verdadeiro, encontra a si mesmo, quando, por exemplo, dessa sua desilusão amorosa — ele no papel daquele arquétipo de Istambul, vagando solitário pelas ruas escuras e sórdidas à beira do Bósforo, enquanto sua amada — nesse imaginário — provavelmente se casava com outro.

MUNDO HÍBRIDO

Essa melancolia advém em grande parte do próprio sentimento de inferioridade turco diante da Europa cujos valores almeja atingir, ao mesmo tempo em que não pode — ou não quer — se livrar de suas raízes. Essa ambiguidade também liga a gente de Istambul com o próprio Pamuk, turco de formação ocidental. Mas, se isso é motivo para angústia, é necessário — na luta contra a resignação que ele tanto viu pelas ruas — que se transforme essa condição híbrida em virtude. No capítulo A Infelicidade É Detestar a Si Próprio e à Sua Cidade (título que já fala por si), escreve: “(...) amo esta cidade não por qualquer pureza que tenha, mas precisamente pela sua lamentável falta de pureza”.

Nesse esforço de uma vida, Pamuk foi recompensado com o Nobel. Mas nem de longe é um amor fácil. Em sua natureza contraditória, a Turquia, que tanto se esforça para ser aceita na União Europeia, processou o escritor por ele ter reconhecido o que o resto do mundo sabe — o massacre de 1 milhão de armênios por turcos durante a Primeira Guerra Mundial. Em fevereiro deste ano, após o assassinato de um jornalista armênio e diante das crescentes ameaças que vinha sofrendo por parte dos ultranacionalistas, Pamuk fez aquilo que há muito tempo vinha hesitando fazer. Mudou-se para os Estados Unidos, deixando, “por muito tempo”, a Istambul em que viveu a vida inteira, sempre, em todas as casas que viveu, com vista para o Bósforo.

BRAVO!, abril de 2007

© Almir de Freitas


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