Paris é uma farsa
No romance Paris Não Tem Fim, Vila-Matas retoma a literatura que versa sobre a própria literatura, feita de escritores e seus fantasmas
Karl Marx escreveu, numa frase que se tornou célebre, que a história só se repete como farsa. E acrescentou: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Ainda que o marxismo ande meio fora de moda, não custa lembrar do filósofo alemão quando se trata de literatura e, em particular, de Enrique Vila-Matas. Se é verdade que todo escritor luta contra os autores que o influenciaram, como disse o crítico americano Harold Bloom, não deixa de ser notável a maneira muito especial com que o catalão lida com essa angústia.
Em Paris Não Tem Fim, Vila-Matas dá prosseguimento a uma obra que se faz, principalmente, como espelho de outras, como um eco da própria literatura. Ele já havia explorado os dois extremos dessa relação com os livros e o passado em Bartleby e Companhia (sobre escritores que se abstêm de escrever) e O Mal de Montano (sobre um escritor obcecado pela literatura). No romance agora publicado no Brasil, o tema é ele mesmo: o protagonista, um escritor catalão reconhecido, relembra, em uma longa “conferência sobre a ironia”, os anos que passou em Paris para escrever seu primeiro livro, A Assassina Ilustrada. Na época, era inquilino da escritora Marguerite Duras. Uma história que é, exatamente, a do próprio Vila-Matas, incluindo a senhoria e o título do romance de estreia.
JOGO E DIVERSÃO
Não se trata, contudo, de uma autobiografia ou de um romance de formação nos sentidos tradicionais. Com Vila-Matas, o jogo nunca é simples. Se o personagem é um reflexo do autor, Ernest Hemingway é o espelho de ambos. Paris Não Tem Fim é uma referência declarada a Paris É uma Festa, de Hemingway. O americano também deve parte de sua formação como escritor ao período em que viveu na capital francesa, nos anos 20. Em comum com Vila-Matas e seu personagem, Hemingway também tinha uma forte ligação com a Espanha, onde lutou na guerra civil contra o franquismo.
É um jogo em que não falta diversão — como nas vezes em que o narrador implica (contra a opinião geral) que é parecido fisicamente com Hemingway, chegando a tentar se inscrever em um concurso de sósias. Mas essa diversão nada tem de gratuita. Em última instância, o livro todo é um exercício de ironia sobre escritores — a ironia, a propósito, que é tema da conferência do narrador.
Se ironia é, o leitor fica sem saber o que é “verdade” e o que é “inventado”. Não importa. Há mesmo uma boa dose de ficção na vida daqueles escritores que, por vontade própria ou não, encarnam o fantasma de seus predecessores. Pode-se, claro, viver angustiado diante disso, mas também é possível divertir-se. Na literatura, mesmo as grandes farsas podem ser bem interessantes.
BRAVO!, março de 2008
© Almir de Freitas