Um século em um dia
Em Sábado, Ian McEwan delineia as incertezas de uma época dividida entre a maravilha e o horror
No fim de um longo dia, a cerca de duas horas do amanhecer, o neurocirurgião Henry Perowne observa a cidade de Londres através da janela do seu quarto. Imagina um outro médico, cem anos antes, também parado diante da janela, ponderando sobre o século que iniciava. A Europa tinha vivido um século de prosperidade e paz, e é provável que esse homem não temesse os anos que viriam. Não demoraria muito para a história mostrar a dimensão do engano. Agora, Perowne sente-se fraco, ignorante, tem medo. Em alguns minutos estará dormindo, encerrando o dia 15 de fevereiro de 2003. Um sábado.
Pouco mais de 24 horas antes, também postado diante da cidade friorenta que se mostrava através da sua janela, esse homem de 48 anos de idade, feliz em sua vida familiar, extremamente habilidoso em sua profissão, inteligente mas não muito culto, iniciava a odisseia de um único dia. É a esse personagem e essa estrutura narrativa que o escritor inglês Ian McEwan recorre, no romance Sábado, para tentar compreender esses tempos “desconcertantes e assustadores”, de maravilhas e horrores, vistos por um homem que, em mais de um sentido, aponta os sinais de um mundo novo.
É uma pretensão e tanto. Romances de ideias, principalmente quando giram em torno dos chamados “grandes temas contemporâneos”, sempre correm o risco de serem aborrecidamente discursivos. Mas McEwan não parece preocupado com isso, até abusa. Centrado na percepção que um único indivíduo tem do mundo, Sábado opera em dois eixos – ciência e política –, misturando descrições detalhadas de procedimentos neurocirúrgicos (incompreensíveis no mais das vezes) com reflexões sobre um mundo às voltas com as ameaças terroristas pós-11 de Setembro e a então iminente Guerra do Iraque.
Mas tudo se resolve esplendidamente bem. Em parte porque McEwan não é dado a tolices – inteligência é algo que sempre conta a favor. E em parte porque todos os elementos que explora fazem sentido do ponto de vista formal: são peças que se encaixam numa arquitetura coerente, enunciadas numa estrutura que está longe de ser gratuita. Nesses dois sentidos, o fato de a trama transcorrer em um único dia é revelador e mesmo essencial.
MONÓLOGO E REVOLUÇÃO
Não é segredo que Sábado evoca o Ulisses de James Joyce, com o seu Leopold Bloom a perambular por Dublin no dia 16 de junho de 1904. Publicado em 1922, o livro do irlandês levava ao extremo o uso do monólogo interior e do fluxo de consciência, recursos que refletiam o impacto das teorias psicanalíticas de Freud, modelares não só da literatura contemporânea mas também de toda a cultura do século 20. Aqui já está dada uma pista do tamanho do desafio de McEwan. Mais que suposta paródia, Sábado evidencia, na sua estrutura e no seu conteúdo, as diferenças que separam um universo do outro. O que se diz, da maneira mais literária possível, é que com o velho mundo que se afasta dilui-se um universo simbólico com que a civilização ocidental operou nos últimos cem anos.
Errática, fragmentada, a subjetividade de Leopold Bloom está associada a uma época em que se apostou no poder libertador do inconsciente, fonte de mistérios capazes de abrir as portas de uma nova percepção. A revolução estética daí advinda só é comparável, na história recente, à disseminação do ideário socialista de Marx no campo da economia política. Não é por acaso que boa parte dos protagonistas das barulhentas vanguardas artísticas europeias do início do século 20 tenha abraçado também, e de forma igualmente ruidosa, o comunismo: forjavam-se, naquele momento, os sonhos libertários, pessoais e coletivos, de várias gerações.
Mas a experiência real do socialismo deu no que deu – 50 milhões de mortos ou mais. Já a psicanálise, se mal não fez, divide o imaginário da felicidade com um discurso farmacológico que, na sua vertente mais radical, interpreta as variações de humor como mero resultado de um desequilíbrio químico nos neurotransmissores. Às vezes não é nem uma coisa nem outra: a patologia está associada, simplesmente, a uma anomalia genética ou a uma deformação anatômica. E aqui estamos de volta ao século de Perowne, ao seu dia e ao seu ofício.
Não se está diante de um desiludido como muitos que têm habitado a literatura recente. Perowne não tem a menor saudade de sonhos espatifados. Nem quer saber se o id, se existe, pode ser libertado. É um homem comum, que trabalha duro e muito. Não está livre de angústias, mas elas são de outra natureza. Quando acorda às 3h40 de seu sábado, num estado de inexplicável euforia, tenta compreender o que se passa. Costuma observar seus estados de ânimo, esforçando-se para ser o mais racional possível. É claro que fracassa na maioria das vezes. Em grande parte, suas angústias derivam daí, da impossibilidade de viver da maneira como age na mesa de cirurgia, quando se depara com a matéria bruta do cérebro, o “bolo molhado” onde se esconde a consciência. Ali, a subjetividade morre: seu único obstáculo é extirpado com precisão por um bisturi. Este é o momento em que ele é mais feliz.
Embora pareça um tanto esquemática, essa caracterização é a chave para Sábado. Confundida com a consciência de seu protagonista, mas distanciada pela voz em terceira pessoa, a narrativa traduz um estado de espírito que rejeita a contemplação e almeja o pragmatismo absoluto – limpo, asséptico, preciso. Está-se diante de um evidente conflito interno permanente e, naturalmente, insolúvel. Perowne é, sim, um homem simples. Mas não se rende. Está longe de se entregar à torrente como Leopold Bloom.
CONFLITO ESSENCIAL
Cirúrgico, McEwan encaixa suas peças. A raiz do conflito original se multiplica e se estende aos acontecimentos de sábado: ela está no avião em chamas que Perowne avista no começo do dia, voando “direto para dentro da sua insônia”; no acidente de carro com Baxter, um homem violento e condenado (muito a propósito) por uma deformação neurológica; na feroz partida de squash (magistralmente narrada) que ele trava com Jay Strauss, um anestesista americano um tanto brutalhão; e na invasão de sua casa, novamente por Baxter – um fato que de quase tragédia se transforma (como se verá) em uma espécie de redenção.
Mas o maior dos conflitos é evocado pela grande manifestação em Londres contra a participação da Grã-Bretanha na Guerra do Iraque, que acontece justamente neste 15 de fevereiro. Diante da questão inevitável que se impõe – ser a favor ou contra a guerra – revela-se mais uma característica fundamental de Perowne: a ambivalência. Cético em relação a si mesmo e à capacidade de discernimento dos outros, teme os homens cheios de certezas, sejam eles os velhos fascistas e comunistas, sejam os novos pacifistas e terroristas islâmicos. Mentalmente, manda um aviso àquele bom médico de 1903, seu duplo e fantasma: “Cuidado com os utopistas, homens dedicados, seguros acerca do caminho que leva à ordem social ideal”. Como ele, Perowne ignora o que virá. Tudo o que sabe é que a guerra contra Saddam Hussein é inevitável, não importa quantas pessoas se apinhem no Hyde Park. Sabe também (o livro foi escrito em 2004) que mais dia menos dia a Inglaterra também seria alvo de atentados – o que se confirmou no dia 7 de julho deste ano, com as explosões que mataram 52 pessoas no metrô de Londres. Mas esta é uma espécie de sabedoria que se sustenta na lógica, é pontual, não tem a ver com questões morais, recolhidas em preceitos genéricos como fé ou ideologia.
Perowne tende a ser a favor da guerra: está bem informado sobre as atrocidades de Saddam e filhos. Diante da multidão em festa, pondera: “Se eles pensam – e podem ter razão – que a continuação da tortura, das execuções sumárias, da limpeza étnica dos genocídios eventuais são preferíveis à invasão, deviam ter um aspecto mais soturno”. Mas, se confrontado com os argumentos obtusos dos que defendem a invasão, fica com vontade de ser pacifista. Num momento, acha que a opinião, a tal opinião pública, só redunda em uma espécie de consenso; em outro, se condena. Preferia estar com o bisturi na mão.
Essa “indecisão estonteante” de Perowne pode ser tomada como um sinal de crise desses tempos. Ao mesmo tempo, é essa própria crise, traduzida numa precariedade individual, que confere uma agudeza de espírito singular a esse homem comum. Livre desde sempre do peso de crenças derrotadas, está imune ao falatório dos bem-pensantes – esses outros seres cheios de certezas. Se no geral é ambivalente, Perowne não hesita em deplorar os relativistas que defendem, por uma “questão cultural”, o uso de burcas por mulheres muçulmanas; ou, então, os professores universitários que veem o mundo moderno como uma sucessão de calamidades, ignorando, por exemplo, a erradicação da varíola e a disseminação de democracias.
Se as grandes referências se foram, se as certezas se diluíram, pouco importa, na verdade, para esse homem que tenta todo tempo ser pragmático nos seus juízos. Em tudo, Perowne se debate em uma fronteira, como se fosse o produto mal-acabado de uma distopia às avessas – um “admirável mundo novo” do qual só se podem ver pequenos sinais. Seria bom, de fato, que a ciência pudesse curar as angústias individuais, que o sistema pudesse evitar que as pessoas voassem pelos ares em atentados. É a mesma variação do mesmo desejo de ordenar a si e ao mundo, sempre fadado ao fracasso.
Como Leopold Bloom, o Ulisses de McEwan termina o dia voltando para sua cama, juntando-se à mulher. Sente seu cheiro, seu calor, sua forma. Agora está pronto para dormir. O domingo, como o novo século, estava quase chegando.
BRAVO!, novembro de 2005
© Almir de Freitas